A medicina dentária, como atividade de natureza médica, é uma profissão autónoma com cerca de 45 anos e que, desde o seu início, se tem pautado pela inquietude dos seus profissionais, dotados de qualidade científica e clínica, orientados por padrões éticos elevados, mas também dotados de um grande empreendedorismo pautados pela livre concorrência, resultante da não inclusão da medicina dentária no Sistema Nacional de Saúde.

Enquanto atividade liberal e regulamentada, a medicina dentária encarna o espírito mais puro do conceito de ordem profissional, que, por delegação do Governo, regula a atividade, regula o acesso à profissão e protege os direitos dos destinatários dos serviços que são, neste caso, os doentes.

Recorde-se que foi através da Lei n.º 110/91, de 29.08, que foi criada a Associação Profissional dos Médicos Dentistas a qual, em 1998, através da Lei no 82/98 de 10.12, passou a designar-se por Ordem dos Médicos Dentistas (OMD). O Estatuto da OMD foi sujeito ainda às alterações de 2003 e de 2015, onde foram introduzidas mais mudanças sobretudo ao nível orgânico. Atualmente, estamos perante mais uma nova alteração.

As sucessivas alterações têm permitido fortalecer a autorregulação da atividade de medicina dentária que foi confiada à Ordem dos Médicos Dentistas, pois a saúde é um direito essencial, previsto na Carta Internacional dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa. E, nesse sentido, constitui um dever fundamental do Governo e da Ordem dos Médicos Dentistas garantir que os beneficiários daqueles que prestam os serviços de saúde possam usufruir de serviços com elevado grau de exigência, competência e qualidade.

O poder de autorregulação da atividade de medicina dentária terá neste novo Estatuto novos desafios que levarão a uma nova atualização do Código Deontológico da OMD, aprovado em 2019 pelo Conselho Geral.

É do conhecimento público como o processo legislativo decorreu e os prazos curtos que foram concedidos às ordens profissionais para apresentarem os seus contributos. Mas, apesar das dificuldades, a OMD, através dos respetivos Órgãos, tudo fez para salvaguardar os interesses da medicina dentária, dos seus membros e dos destinatários dos seus serviços.

Portanto, o novo Estatuto não é perfeito, nunca seria, mas tem alguns pontos positivos entre outros negativos.

Entre os pontos positivos deste novo Estatuto, destaco a introdução de algumas alterações de fundo ao nível do quadro do exercício disciplinar, nomeadamente no que diz respeito à sujeição das sociedades profissionais de médicos dentistas e multidisciplinares de profissionais aos deveres aplicáveis aos profissionais membros da OMD, que sejam compatíveis com a sua natureza, estando nomeadamente sujeitas aos princípios e regras deontológicos constantes do Estatuto.

De acordo com o documento aprovado na Assembleia da República, no dia 13 de outubro de 2023, os membros do órgão executivo das sociedades profissionais de médicos dentistas e das sociedades multidisciplinares devem respeitar os princípios e regras deontológicos, a autonomia técnica e científica, e as garantias conferidas aos médicos dentistas pela lei e pelo presente Estatuto, sendo que as pessoas coletivas que exerçam as competências que, por lei, estejam atribuídas aos médicos dentistas, estão sujeitas à jurisdição e regime disciplinares da OMD.

Esta matéria foi objeto de proposta na anterior revisão estatutária, mas esbarrou na lógica liberal e puramente comercial, onde os agentes promotores do negócio da saúde são estranhos à medicina e os executores são profissionais de saúde.

Estas novas alterações aprovadas pela Assembleia da República constituem, talvez, o início de alteração do paradigma daquilo que se assiste hoje na medicina dentária, onde não pode só prevalecer uma visão empresarial na prestação de cuidados de saúde.

A indução de tratamentos desnecessários e sobretratamentos, que muitas vezes são “impostos” aos doentes, devido à desigualdade na informação clínica e técnica entre o médico dentista e o doente, devem ser disciplinarmente sancionados de igual forma ao médico dentista que pratica, como ao detentor da clínica que promove e, por vezes, obriga o médico dentista a praticar.

Numa sociedade onde há assimetria de informação médica, o regulador deve proteger os direitos dos cidadãos e dos utentes de saúde. E só com a imposição dos mesmos deveres e dos mesmos direitos aos médicos dentistas e sociedades multisdisciplinares, com as adaptações necessárias, é que se atinge em toda a extensão a proteção dos direitos dos doentes, permitindo um livre e igualitário acesso aos serviços de saúde, promovendo a qualidade da prestação dos serviços, assegurando a prontidão de resposta, garantindo o acesso por parte do doente à consulta do seu processo clínico sem descurar a garantia da proteção dos dados pessoais.

Adicionalmente, esta obrigação das sociedades perante a OMD garante, ao doente, outros direitos: o direito de escolha do prestador; o direito à segunda opinião; o direito à continuidade da prestação de serviços e o direito em apresentar reclamação dos serviços prestados.

Um dos temas de hoje, mas que, no futuro, o Conselho Deontológico e de Disciplina terá que ter ainda uma maior atenção, é a publicidade em medicina dentária no quadro da sua jurisdição reconfigurada deste novo quadro estatutário, procurando evitar práticas que não defendem o utente, designadamente pela indução artificial da procura de cuidados de saúde e violação da liberdade de escolha.

Este poder disciplinar reconfigurado não invalida a ação disciplinar que o CDD tem vindo a desenvolver sobre os diretores clínicos, enquanto responsáveis técnica e deontologicamente, pois o quadro legal e regulamentar vigente no âmbito da medicina dentária impõe às clínicas e consultórios de medicina dentária a existência de uma direção clínica.

Em 2019, o atual Código Deontológico da OMD aprovado pelo Conselho Geral, após consulta pública, veio consagrar expressamente os deveres e direitos do diretor clínico, no artigo 29º, tendo assim mais peso normativo. A densificação e o enquadramento das funções do diretor clínico têm constituído uma preocupação cen- tral do CDD ao longo destes últimos anos, pela importância que reveste no funcionamento de uma clínica/ consultório de medicina dentária e, concretamente, pela responsabilidade que recai sobre o médico dentista que exerce o respetivo cargo.

Todos estes direitos consagrados vão no sentido de proteger os doentes que são os mais desprotegidos, os mais desfavorecidos ou que se encontram numa posição de inferioridade perante uma relação interpessoal, especificamente na saúde, onde há uma assimetria de informação entre os doentes e os profissionais de saúde.

A promulgação e aplicação destas normas demonstra bem a intenção do legislador de querer garantir a existência nestes espaços de saúde do perfeito cumprimento dos preceitos éticos e deontológicos da medicina dentária, tendo como objetivo a prestação dos melhores cuidados de saúde e assim ajudar a promover a candidatura para classificação pela UNESCO da relação médico-doente a Património Imaterial da Humanidade, pela criação de mecanismos legais de preservação e de proteção desta relação.

Luís Filipe Correia
Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina

Artigo publicado originalmente na Revista OMD nº 57 (2023 outubro).