“Oração de Sapiência”, por Ivo Pitanguy

Professor de Cirurgia Plástica, no IV Congresso da APMD

1. A busca do conhecimento em qualquer campo de atividade profissional requer obstinação e desprendimento.

2. Como todo o produto da Ciência, a Cirurgia Plástica não surgiu de um momento para o outro. Sua origem é milenar. Os períodos mais criativos da especialidade estão em consonância com as épocas mais sangrentas da humanidade. O elevado número de deformidades decorrentes das guerras incentivou o espírito criador dos cirurgiões a procurar métodos para corrigi-las ou amenizá-las. Esta luta do homem contra a deformidade, traduz o desejo de reintegrar o indivíduo na sua comunidade.

3. Hoje em dia vivemos sob p signo do trauma, da violência urbana, dos acidentes de trânsito, das irradiações e do desequilíbrio ecológico.

4. O ser humano é o seu corpo. Seu corpo é a sua forma de estar no mundo.

A expressão corporal indica tanto ao cientista quanto ao artista, os movimentos da ânima.

A energia, envolvida em todos os processos vitais, segue seu trajeto natural, através do labirinto hermético do corpo até encontrar um obstáculo.

5. A quantidade de energia que um indivíduo usa e como ele a usa, denunciam-no e se reflete na sua personalidade. Também é assim nos processos sociais e psicossociais. Captar os bloqueios energéticos – soluções de continuidade em seu necessário fluir – e resolvê-los, é tarefa por vezes difícil, mas sempre necessária.

6. Como na análise do corpo político-social, também os estudiosos do indivíduo – em seu complexo psicossomático – buscam arrancar da natureza humana alguns dos seus segredos. Como o pintor prepara a sua tela, suas tintas, o escultor sua pedra, devemos preparar o ser antes de nele intervirmos. O corpo lúcido toma iniciativas, inclui-se na decisão.

7. Na sua longa caminhada desde os tempos mais remotos até aos dias de hoje, o homem sempre procurou a identidade com o seu par, com sua tribo, com seu grupo social. Ele jamais desejou ser diferente, na medida em que tal diferença implicasse distanciamento do seu grupo. Sua conceituação de beleza esteve sempre mais ligada à semelhança com os seus pares; nas características pertinentes a seu núcleo encontrou maior harmonia.

8. A experiência adquirida, lidando com pacientes de vários núcleos, latitudes diversas, grupos sociais distintos, me ensinou que o sofrimento é o mesmo; o ser humano é um só e o bem-estar, na sua intimidade, não é apenas a consequência do sentido de saúde orgânica, é muito o sentido de conviver em paz e tranquilidade com sua imagem.

9. Que sentido de imagem seria este? – Imagem por nós percebida ou a que a nossa empatia percebeu como o outro vê? Nossa perceção não poderia jamais ser verdadeira, se não procurássemos sentir o outro, compreendê-lo, pois sem esta interação o fenómeno criativo tornar-se-ia impossível.

10. A avaliação da arquitetura corporal, além de envolver a análise minuciosa de cada estrutura e o equilíbrio global de seus elementos, se complementa através de uma perceção lúdica do indivíduo e de seus anseios.

11. Cada raça possui seu próprio conceito de beleza, que sofre mutações com as idiossincrasias e filosofias de cada época. E, ainda dentro de uma mesma raça, cada ser humano tem seu próprio conceito, conforme seu temperamento, cultura e sensibilidade, a determinar sua forma particular de perceber, conceber, de sentir o mundo, de raciocinar e julgar.

12. Por maior que seja sua compreensão de harmonia, de beleza, o cirurgião está diante de uma grande limitação quando comparada à do pintor, do escultor e do poeta, para os quais o espaço não está restrito em relação ao que sua criatividade pode traduzir.

13. Somos escravos da forma e da anatomia, e muitas vezes sentimo-nos frustrados, pois lidando com o ser humano, o acrescentar e o retirar estão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que a nossa força criativa. Além de enfrentarmos tais limitações de ordem anatómica, encontramo-nos diante de um ser que pensa, que se interpreta – que escolhe seu Deus.

14. O paciente vê o cirurgião plástico como pintor-escultor de formas vivas, que lida com um ser que é ao mesmo tempo racional e sensível, consciente e inconsciente, corpo e alma. Na sua busca de criar a beleza exterior, o cirurgião procura captar a essência do indivíduo.

15. Na tradição ocidental, o mito de Fausto lembra ao homem a sua condição finita e ao mesmo tempo sua incessante busca da imortalidade, de beleza, da infinitude, do absoluto – em outras palavras, a eterna juventude, fonte de amor de um paraíso perdido e sempre almejado. Na visão do paciente, o cirurgião plástico é uma personagem fáustica, um aprendiz de feiticeiro – quase mágico, pois ele aspira a transtemporalidade e a perfeição de seu modelo, o próprio paciente.

16. Recordando as sábias palavras de Tennyson no seu poema

“Ulysses”:

“E este espírito envelheceu, se consumindo no desejo de seguir o conhecimento, como uma estrela cadente, além da última fronteira do pensamento humano”.

17. É através de uma teia de criatividade tecida entre o cirurgião e o seu paciente que ambos alcançam o entendimento quanto ao resultado desejado.

18. Senhoras, Senhores,

A luta constante do cirurgião, no sentido de conferir à Cirurgia Plástica merecida dignidade, está refletida na crescente correlação entre os aspetos estéticos e reparadores de especialidade. Basicamente, a cirurgia estética objetiva melhorar a forma, enquanto que a reparadora recupera a função e restaura a forma. Assim sendo, as cirurgias estética e reparadora se complementam, sendo difícil definir o limite entre elas.

19. A constante evolução da Ciência reflete-se na Cirurgia Plástica, no sentido não só de minorar cada vez mais os efeitos adversos do tempo, como também de atuar de modo relevante nas alterações psicossomáticas. Esta evolução permitiu também o surgimento de subespecialidades, o que possibilitou um tratamento mais direcionado às deformidades anatómicas regionais.

20. Paralelamente, especialistas de áreas afins, formaram grupos voltados para a abordagem estética multidisciplinar. Cabe a nós, cirurgiões plásticos, avaliar com profundidade se as propostas desses grupos coadunam-se com os reais objetivos da nossa especialidade.

É nosso dever, portanto, levar a experiência adquirida a todos aqueles imbuídos da verdadeira curiosidade científica, para que nosso conhecimento possa dissipar dúvidas e dirimir alternativas falsas.

21. O sentido da verdadeira hierarquia profissional é o conhecimento. Se no momento, adquiri-lo é privilégio de poucos, incentivá-lo é obrigação de todos nós – tanto no setor privado como no setor público. Julgo que o mais importante em nossa trajetória profissional seja o ensino e a divulgação da Cirurgia Plástica, formando profissionais capazes de levá-la aos mais remotos territórios do nosso país e de tantos outros no mundo, tornando-a mais acessível a todas as camadas sociais.

22. A força da motivação aliada ao espírito de grupo permite criar-se uma estrutura de qualidade e respeito. Na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, onde mantemos a 38ª Enfermaria, há mais de 30 anos, contamos com a colaboração altruísta de profissionais dedicados ao atendimento da população menos favorecida.

23. Esta filosofia pela qual lutamos permanentemente, já não é só nossa, mas de vários colegas, que imbuídos do mesmo ideal, nem sempre com o devido apoio de órgãos governamentais, criaram e mantêm serviços especializados em todo o país, motivados pelo amor ao paciente e a transmissão do conhecimento, condições fundamentais e, porque não dizer, essência hipocrática do médico.

24. Senhoras, Senhores,

A saúde é um direito de todos e é dever de toda Nação assegurar a universalização e equidade desse direito. O que se verifica atualmente, entretanto, é que o sistema de saúde mundial está vivendo um momento caótico.

25. Segundo a Teoria do Big Bang ou das Catástrofes, o Universo teria nascido da desordem e está em permanente expansão. A vida nos domínios eco ou auto-sistémicos é vida e morte, ou melhor, é vida que se organiza a partir da morte – desordem.

O Homem, é “Sapiens demens” como diria Edgar Morin, e não o modelo lógico e racional do “sapiens sapiens”, e a sociedade cresce e reorganiza-se a partir da sua própria desestruturação. – Helas! estamos à espera de um grande crescimento?

26. Sabemos hoje, que todos os sistemas abertos, toda organização sistemática, das máquinas de inteligência artificial, passando pelo cosmos, pela vida, pelo homem, até à sociedade e à cultura, incessantemente se desorganizam para se organizarem numa dinâmica que parte de um equilíbrio inicial através de desequilíbrios para “equilíbrios majorantes” cada vez mais amplos. Creio que a atual desorganização internacional dos sistemas de saúde atingiu o momento ideal para reencontrar este “equilíbrio majorante”.

27. A qualidade do futuro da Medicina Mundial está intrinsecamente ligada a mudanças estruturais de base, mais condizente com a realidade de cada país. Torna-se necessário uma melhor adequação dos curriculos de todos os níveis de Ensino Médico, apoiando a pesquisa científica, incentivando a formação de paramédicos e proporcionando um melhor atendimento nos postos de saúde e na rede hospitalar.

28. O estado de saúde de uma população é produto do esforço, dedicação e competência de todos os médicos, ansiosos por condições básicas para que possam realizar com mais dignidade o seu trabalho.

29. O campo da Cirurgia Plástica encerra uma finalidade transcendente, que é a tentativa de harmonizar o corpo com o espírito, a emoção com a razão, visando estabelecer um equilíbrio interno que permita ao indivíduo reencontrar-se, reestruturar-se, para que se sinta em harmonia com a sua própria imagem.

Muito Obrigado!