Na procura de um tema para este artigo de opinião, decidi reler as revistas da APMD e da OMD que ao longo dos tempos têm sido publicadas – coletânea essa que tenho guardado religiosamente desde a sua primeira edição -, o que fez com que me deparasse com um sem número de histórias que me entusiasmaram.

Li artigos de opinião, ofícios, notícias, decisões dos nossos representantes e recordei momentos, recolhi informações de muitos acontecimentos, alguns ímpares e que fizerem história ou foram determinantes para o que é hoje a medicina dentária.

Revi fotos de professores, colegas, amigos. Muitos deles contribuíram para a minha formação académica, científica, clínica e até mesmo de caráter.

Recuperei momentos, revisitei congressos, da APMD à OMD, alguns desses acontecimentos bem gravados na minha memória, outros mais esquecidos, mas todos eles lidos com muita emoção, porque trata-se da história da medicina dentária, por isso é importante que a memória não se apague.

Nesse encontro com o passado, despendi tempo na leitura de temas que me fizeram pensar, que me levaram a concordar ou discordar dos seus autores, até pelo percurso que os acontecimentos tiveram, levando a uma análise até diferente daquela que foi feita na altura.

Vi, nos temas publicados e nos seus autores, uma genuína dedicação à classe que, por ser tão jovem, precisava duma atenção permanente para que fossem trilhados os melhores caminhos para atingir o sucesso e o reconhecimento por parte da comunidade.

Um verdadeiro objetivo de informar e simultaneamente alertar a classe para o cumprimento das obrigações profissionais, associado à necessidade de mostrar a qualidade e a diferença da prestação de serviços em saúde oral, com um único propósito, o benefício da população.

Entre leituras, deparei-me recorrentemente com um tema que levantou, e continua a levantar, discussão e até mesmo alguma discórdia, desde praticamente o início da formação da nossa primeira associação de classe: a publicidade em saúde. Até porque a publicidade tem sido uma ferramenta utilizada na divulgação da atividade em saúde desde há muito tempo e com diferentes abordagens legislativas de país para país, e até dentro do mesmo país, como é o caso de Espanha.

Na verdade, este tema foi abordado por diversas vezes e por vários elementos dos órgãos sociais, nomeadamente por ex-presidentes do Conselho Deontológico e de Disciplina (CDD). Todos eles demonstravam uma grande preocupação e um receio que esta provocasse repercussões negativas na classe, tanto na prestação dos serviços por parte dos médicos dentistas, como nos direitos dos doentes.

Desta forma, fui impelido a reproduzir algumas dessas afirmações e opiniões, pois é importante recordar que atrás de tempos, outros vêm e que muitos dos problemas da atualidade já o eram há algum tempo. É trazer à memória as dificuldades do passado, muito semelhantes às de agora.

Passo à revisita:

Na Revista da APMD, no 18 de jan/mar, de 1997, pág. 19 a 25, o presidente do CDD da altura, Dr. Crespo de Carvalho, em entrevista e na primeira pessoa, afirmava que “é de uma inteira falta de dignidade por parte de alguns médicos dentistas, ousarem confrontar-nos com o deprimente espetáculo, cada vez mais frequente, de assistirmos à distribuição de panfletos publicitários, muitos deles enganosos” e, mais adiante, “o desrespeito que se está a acentuar no seio da classe”.

Instado a pronunciar-se sobre que tipos de participação mais frequentes surgem no CDD, respondeu que “assentam mais na publicidade desprestigiante” e “tratamentos mal feitos”, ideia secundada pelo Prof. Américo Afonso, na Revista da OMD, Ano I, março de 1999, quando afirma na pág. 41 o “agudizar de algumas situações”, como o “incremento do número de casos por violação do art.o 25, que respeita a publicidade” e “com o crescimento de queixas” e “por maus tratamentos ou negligencias nos atos médico-dentários”.

Na Revista da APMD, no 21, de out/dez de 1997, pág. 17 a 20, o Prof. João Aquino Marques, na altura ainda como membro do CDD, escreveu que “a atividade publicitária é relativamente recente em medicina dentária”, que o Conselho Deontológico “rapidamente se viu inundado de casos para analisar” e que, “estando a publicidade perfeitamente regulada no nosso Código Deontológico, a interpretação dos seus artigos e respetiva aplicação” “nem sempre revelaram facilidade”.

Referiu, ainda, que entre os colegas existia “alguma confusão” tanto no sentido da “suposição de que toda a publicidade era permitida” ou “interdita”, como daqueles que achavam o seguinte: o CDD mesmo que reprima “certas formas de publicidade, de futuro isso deixará de existir, levando a que dentro de princípios de oferta e de procura num mercado aberto, a publicidade em medicina dentária passará a ficar liberalizada”.

Devo realçar que toda a regulação da publicidade em saúde, já estava definida tanto pelos Estatutos da APMD, e da OMD posteriormente, como também pela Lei Geral da Publicidade, publicada em 1990. No entanto, já eram bem evidentes as dificuldades na aplicação da legislação existente.

No mesmo artigo, o Prof. João Aquino Marques exemplificou casos hipotéticos, mas com certeza relacionados com a realidade, como o da existência de publicidade promovendo descontos e o da primeira consulta gratuita com destartarização incluída, em que se alertava que esta publicidade violava o art.o n.o 25 e o art.o n.o 22, do Código Deontológico vigente, por não permitir que o médico dentista reduza os honorários ou que anuncie a gratuitidade, porque deve “respeitar sempre os valores mínimos fixados pela tabela de honorários da APMD”.

“Mas o mais importante, no meu entender, é que tal desconto significa uma degradação do ato médico- dentário uma vez que este tem de ser respeitado e dignificado como tal, não se tratando de um produto que é oferecido ao público em época de saldos ou promoções”.

Na Revista da APMD no 22, de jan/mar de 1998, pág. 31, o presidente do CDD da altura, Prof. Américo Afonso também escreveu que, “infelizmente, o Conselho Deontológico e de Disciplina tem sido confrontado com significativo número de casos em que são indiciadas violações ao art.o 25o do Código Deontológico, ou seja, às regras da publicidade”.

A Tabela de Nomenclatura e valores relativos foram dados a conhecer à classe na Revista da APMD no 12, de abril/junho de 1995, pág. 35 a 40. Esta tabela foi um instrumento criado em 1995, ainda pela APMD, com o intuito de regular a atividade e encontrar valores mínimos para os tratamentos dentários, que incentivassem a qualidade da prestação dos serviços e premiassem os doentes com essa mesma qualidade.

Ainda na Revista da APMD no 14, de jan/mar de 1996, eu próprio enalteci a implementação dessa primeira tabela de honorários, “tabela que, desde já, obriga a todos os profissionais inscritos na APMD a praticá-la”, pois a sua ausência fez com que existisse “uma disparidade de valores”, com “alguns colegas a praticarem honorários demasiado baixos, sem quantificar a realidade dos custos”,cujo comportamento “mostra até um certo desrespeito por si próprio”.

Ainda no mesmo artigo, questionava: “Como será possível implementar desde já esta tabela, quando os vários sistemas de saúde ainda não a aceitaram?”. E dizia que era necessária “a consciencialização de todos para a necessidade de se adotar esta tabela, em prol da dignificação da classe”.

Entretanto, é preciso relembrar que esta Tabela de Nomenclatura e valores relativos teve que ser revogada pelo CDD, por imposição da Autoridade da Concorrência, em 2005.

Ora, com isto torna-se evidente que, desde o início da nossa atividade, este tema da divulgação da atividade profissional é uma preocupação constante e um ponto de grande atenção por parte dos vários membros que integraram o Conselho Deontológico e de Disciplina ao longo dos anos.

Entretanto passaram-se mais de 20 anos e o que é que mudou?

  • Éramos cerca de 2.000 médicos dentistas na altura que a OMD foi criada, em 1999, e agora somos 12.000. Em 20 anos, a classe tornou-se seis vezes maior!
  • A Tabela de Nomenclatura e valores relativos teve que ser suspensa em 2005, por imposição da Autoridade da Concorrência.
  • Em 2007, a OMD emitiu o Regulamento no115/2007 relativo à divulgação da atividade profissional do médico dentista.
  • As leis que regulam a publicidade mudaram, com avanços e recuos quanto à sua regulação, diretamente relacionados com as políticas económicas europeias vigentes, em que imperava um forte pendor de ideias neoliberalistas, levando à crença de que seria o próprio mercado a regular a atividade.
  • A ERS, impelida pela situação criada de incremento da utilização de meios publicitários em todas as áreas da saúde, acabou por tomar, em 2014, a iniciativa de chamar a si alguma responsabilidade nesta regulação. Mas o Regulamento sobre a Publicidade que fez publicar, a Recomendação no 1/2014, estipulando um conjunto alargado de diretrizes a observar pelos prestadores de cuidados de saúde no âmbito da publicidade em saúde, não correspondeu às expectativas criadas pela OMD, nem foi de acordo com os interesses dos doentes. O seu articulado é de difícil compreensão, interpretação e aplicação. Em resumo, se pretendia atuar e regular, não o faz por paralisia legislativa.
  • Surgiram a implementação dos novos Estatutos da OMD e Código Deontológico.
  • Os médicos dentistas passaram de uma prática clínica preferencialmente isolada para uma prática clínica integrada.
  • As clínicas dentárias de 1995, detidas maioritariamente por médicos dentistas, são agora em larga escala detidas por grandes grupos empresariais.
  • Se na altura só existiam subsistemas de saúde, agora, para além destes, proliferam os seguros e os planos de saúde.

Resultado direto ou não destas sucessivas alterações e mudanças ao longo destes 20 anos, a verdade é que, atualmente, a publicidade em saúde é mais agressiva e mais lesiva dos interesses dos doentes e dos seus prestadores.
Tudo isto leva a questionar-me: Será que as sociedades modernas se tornaram sociedades de pessoas diferentes, que procuram o barato (idealmente de borla…), o muito rápido e, se possível, descartável?

Quero acreditar que não, pois a saúde, sendo um direito fundamental e inegociável, obriga a que os serviços prestados pelos médicos dentistas tenham obrigatoriamente que ser de qualidade e que a relação entre o médico e o doente seja de proximidade e confiança.

Por acreditar que estamos na fase de mudança de paradigma, gostava de recordar a ação do Conselho Deontológico e de Disciplina no que respeita à violação das normas de divulgação da atividade. Como exemplo, deixo-vos os dados dos últimos dois anos: em 2017, foram desencadeadas 51 ações disciplinares e, em 2018, foram mais 49.

Como se vê, a publicidade em saúde continua a ser um tema de capital importância e que mereceu uma atenção redobrada por parte do legislador. Desde logo, em 2015, como é do conhecimento público, foi aprovado o regime jurídico a que devem obedecer as práticas de publicidade em saúde (Decreto-Lei no 238/2015).

E, mais recentemente, o novo Código Deontológico da OMD – que entrou em vigor no passado dia 19 de junho – tem um título (TÍTULO III) inteiramente dedicado à matéria da publicidade, onde estão reguladas matérias como:

  • Proibição da indução de aquisição de serviços de saúde sem atender à necessidade clínica do doente;
  • Conteúdos permitidos e proibidos;
  • Suportes admitidos;
  • Divulgação por via eletrónica (Internet e redes sociais);
  • Rastreios epidemiológicos e ações de promoção de saúde oral;
  • Relação do médico dentista com os meios de comunicação social.

A publicidade em medicina dentária continua a merecer toda a atenção por parte Conselho Deontológico e de Disciplina que, não obstante a suas competências em termos de ação disciplinar da OMD, tem também adotado uma atitude informativa e pedagógica junto da classe, nomeadamente nos cursos de formação contínua e sessões dos temas socioprofissionais no congresso, quer ainda junto da “futura classe”, com sessões de esclarecimento anuais aos alunos finalistas do mestrado integrado em Medicina Dentária.

A defesa de uma medicina dentária de qualidade e digna começa em primeiro lugar por nós, médicos dentistas, que devemos respeitar e fazer respeitar os nossos princípios éticos e profissionais.

Luís Filipe Correia
Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina

Artigo publicado originalmente na Revista OMD nº 42 (2019 julho)