A Ordem dos Médicos Dentistas repudia veementemente o teor do artigo “A verdade sobre a odontologia” (pdf) publicado na revista do jornal Expresso, deste sábado, 4 de maio de 2019.

O artigo, traduzido de uma publicação norte-americana, parte de um caso particular de alegada fraude, que terá sido cometida nos EUA por um médico dentista, para fazer uma série de insinuações insidiosas e espúrias sobre a medicina dentária e os seus profissionais.

A OMD lamenta profundamente que um jornal como o Expresso se limite a publicar sem qualquer sentido crítico artigos de publicações estrangeiras e do seu descontentamento dará nota à direção do jornal, através deste texto elaborado pelo médico dentista e professor António Duarte Mata, diretor do Centro de Estudos de Medicina Dentária Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, a pedido da OMD.


Artigo do médico dentista António Duarte Mata

O artigo “Verdade Sobre a Odontologia” parte de um possível caso de sobre tratamento por parte de um médico dentista americano cujo o teor me abstenho de comentar. Trata-se de um hipotético caso de fraude que será comum a todas as profissões. A conclusão a retirar será que em todas as atividades existem bons e maus profissionais assim como pessoas mais e menos idóneas relativamente à profissão que abraçaram.

O que me parece digno de comentário será a generalização de classe que o mesmo artigo faz. Parece-me no mínimo anedótico que os autores do artigo consigam concluir a total sub preparação científica da medicina dentária relativamente a outras áreas médicas a partir da extrapolação da atividade de um único médico dentista. Não será esta certamente uma conclusão científica e isenta de vieses.

Aliás, quem é conhecedor da história da medicina verifica que muitas das afirmações produzidas no artigo são verdades mal interpretadas num processo de descontextualização permanente.

É verdade que a origem da profissão reparte-se entre médicos e barbeiros, mas este facto ocorre à semelhança de muitas áreas médicas, como a própria cirurgia, não advindo daí consequentemente nenhum estigma vaticinador de menor capacidade, como o texto parece fazer crer numa lógica de “quem nasce torto nunca se endireita”.

A medicina dentária encontra-se hoje enquanto profissão tão regulamentada como qualquer área médica nos seus pressupostos de exercício e dever deontológico a nível mundial.

A questão levantada da hipotética autoridade excessiva do médico dentista sobre o seu paciente não é exclusiva (ao contrário do que o artigo dá a entender) da medicina dentária. Muita da prática médica foi até final dos anos 80 revestida de um desígnio autoritário do médico sobre o seu paciente. A própria génese da medicina baseada na evidência (ou prova) está ligada à constatação de que o corpo de evidência científica crescente e que emanou do estabelecimento dos desenhos modernos de investigação clínica da segunda metade do século XX, deveriam substituir o autoritarismo enquanto novo algoritmo de decisão clínica.

Atente-se na frase David Sackett um dos fundadores da medicina baseada na evidência que nos parece elucidativa: “Por melhor intencionados que possam ser os paradigmas baseados apenas no autoritarismo, intuição, experiência clínica não sistematizada, e plausibilidade fisiopatológica são insuficientes para estabelecer recomendações clínicas que devem ser baseadas em avaliações críticas da melhor literatura de investigação clínica.”

É verdade que a medicina dentária baseada na evidência veio por a nu algumas deficiências presentes na investigação clínica da área, mas o mesmo ocorreu em todas as outras áreas médicas. O objetivo da própria medicina baseada na evidência é avaliar criticamente a investigação clínica existente destilando a de melhor qualidade para servir de apoio à decisão médica. A investigação clínica em medicina dentária tem sido alvo de um desenvolvimento ímpar resultante dos diagnósticos emergentes dos processos analíticos da medicina baseada na evidência.

Existe presentemente muita investigação clínica de qualidade na medicina dentária. Aliás muitas das relações entre patologia oral e sistémica, que se encontram descritas no texto como factos alarmantes para os quais a medicina dentária deveria olhar, foram propriamente descobertas pela investigação em medicina dentária, feita muitas vezes por médicos dentistas.

A medicina baseada na evidência permitiu nos últimos anos desmultiplicar novas áreas de necessidade médica tais como a medicina de precisão, medicina translacional, investigação clínica de efetividade, entre outras. Em todas estas áreas a medicina dentária está presente qualquer que sejam os centros académicos ou de intervenção clínica.

Finalmente a medicina dentária cosmética encontra o seu desenvolvimento em raízes de mudança social e do alargamento do próprio conceito de bem estar enquanto fator essencial à saúde, que não são alheias nem separadas de toda a medicina estética cujo crescimento é inquestionável, nada tendo a ver com uma necessidade objetiva de sobre tratamento por diminuição da prevalência da cárie dentária, aliás esta última, outra conquista da aplicação da investigação em medicina dentária.

Importa, pois, frisar veemente que hoje em dia no século XXI a medicina dentária é uma ciência médica perfeitamente integrada com todas as áreas da saúde, contendo um corpo de evidência científica suficientemente robusto para basear a decisão clínica. Dizer o contrário em argumentações superficiais mais do que deselegante é irresponsável e dinamizador de um medo pouco objetivo e pernicioso para com uma classe que merece todo o respeito.

António Duarte Mata
Médico dentista (Consultar CV)