Na altura que termina mais um ano letivo, é o momento dos finalistas do Mestrado Integrado em Medicina Dentária procederem à sua inscrição na Ordem dos Médicos Dentistas para legalmente terem acesso ao exercício da profissão.

Este é um momento de grande importância pessoal: é o culminar de cinco anos de estudo e trabalho intenso, tempo esse correspondente à aquisição de importantes conhecimentos científicos, clínicos e éticos, que lhes permitirão, no futuro, prestar cuidados de saúde oral de qualidade à população, concretizando a aposta na carreira que sonharam no momento da escolha do curso.

Mas é também nesta altura do ano que é mais notória a pressão que estes novos médicos dentistas provocam na classe, no mercado de trabalho e por conseguinte nos doentes. Sem ter ainda em conta os números da OMD de 2017, em 2016 eram 10.688 os inscritos na Ordem dos Médicos Dentistas, tendo tido uma média de crescimento anual, nos últimos 10 anos, de 650 novos médicos dentistas por ano. Com estes números, Portugal é um dos países da comunidade europeia com maior densidade de médicos dentistas, apesar de, e em contraponto, uma parte significativa da população portuguesa continuar a não ter acessos aos cuidados de saúde oral, especialmente por falta de recursos económicos.

Ora este crescente número de profissionais faz com que todos os médicos dentistas, que trabalham em Portugal, sintam mais dificuldades no exercício da sua atividade diária, nomeadamente no que respeita ao número de doentes atendidos e aos ganhos associados. Este incremento leva inevitavelmente a uma grande pressão no mercado de trabalho, pois a medicina dentária é ainda uma atividade predominantemente privada e onde o setor público não tem tido, até agora, um papel relevante.

Esta pressão força praticamente todos os médicos dentistas a uma adaptação global a esta nova realidade, designadamente no que diz respeito a manter a sua posição e dignidades profissionais.

Temas como a instabilidade e insegurança do trabalho, a empregabilidade e a remuneração, a formação e a inovação, o marketing e a publicidade, são fatores importantes que devem ser tratados de forma realista, atualizada e adaptada ao tempo atual, no sentido de reduzir ou suavizar os efeitos nefastos que pairam na classe, arranjando soluções para as novas situações que têm ultimamente surgido, como a emigração e o subemprego, situações para as quais não estávamos preparados, nem queríamos ter que lidar.

Nos últimos 10 anos tem havido alterações profundas no regime de contratualização de médicos dentistas. Hoje é “normal” um médico dentista, especialmente entre os mais jovens e que estão no início da sua carreira, exercer a sua atividade em vários consultórios, prestando serviços a baixas remunerações, independentemente das horas que exerçam.

Diria que a remuneração a que estão sujeitos está intimamente relacionada com o tipo de tratamentos que estes médicos dentistas executam, de caráter mais generalista, e com o tipo de clínicas e de doentes que atendem nas clínicas onde exercem, isto é, se relacionados com planos de seguro, seguros de saúde, convenções ou particulares.

O tipo de relação contratual entre o médico dentista e uma clínica, espera ainda por uma legislação própria, como foi recentemente afirmado pelo nosso Bastonário, pois “para além da figura do empregado ou do desempregado, é essencial legislar no sentido da criação do conceito de subemprego. A profissão liberal encontra-se desprotegida pelas leis do trabalho, nomeadamente em termos de categoria profissional, empregabilidade, maternidade, proteção na doença, acidentes de trabalho, incapacidade profissional e reforma.”

A Ordem dos Médicos Dentistas, especialmente através do seu Bastonário, mas também pelos vários comunicados que tem emitido e que eu subescrevo, há muito que tem alertado para a necessidade de analisar e avaliar as consequências deste aumento de número de médicos dentistas, chamando à atenção das entidades competentes para a premência em encontrar uma resposta consonante com as necessidades do país, tendo como principal objetivo inverter esta realidade atual: o aumento exagerado do número de médicos dentistas.

Deve-se, então, ter uma ação concertada e em dois tempos diferentes: no período que antecede a entrada do estudante na e no período correspondente à atividade profissional do médico dentista.
No período pré-universitário, a comunidade deve ser informada sobre a realidade atual pela qual passa a profissão, para que no momento da escolha, os candidatos a medicina dentária possam ponderar de uma forma mais consciente e realista todos os fatores decisórios, como a vocação, o caráter liberal ou autonomia da profissão, em pé de igualdade com os fatores negativos que a profissão atualmente sofre.

Por sua vez, o Ministério da Educação deve ter em atenção as necessidades do nosso País em matéria de abertura ou redução de vagas nas faculdades, dando indicações precisas e eficazes.

Após a formação universitária do médico dentista e com a entrada no mercado de trabalho, a ação deve ser multifacetada de forma a ter uma ação em todo o percurso profissional.

Nesse sentido, não há dúvida que se deve apoiar o Estado na criação de mecanismos necessários de acesso à saúde oral que muitos portugueses não têm, nomeadamente os economicamente desfavorecidos ou medicamente comprometidos.

A aposta acertada do atual governo em contratar mais médicos dentistas para prestarem serviço nos centros de saúde e a criação das carreiras de médicos dentistas dentro da função pública, de forma a dar o estatuto que falta ao médico dentista dentro do Sistema Nacional de Saúde, são indicações favoráveis que devem ser por todos apoiadas.

Dado que a profissão é predominantemente liberal, e uma vez já identificados quais os problemas que resultam com o aumento contínuo de médicos dentistas à procura de emprego, deve-se abordá-los de forma multifatorial e concertada:

1. Sem prejuízo do regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais, creio que se todas as sociedades comerciais detentoras de clínicas ou consultórios de medicina dentária fossem obrigatoriamente constituídas, pelo menos na maioria do seu pacto social, por sócios médicos dentistas, seria possível assegurar, mais eficazmente, o respeito e o cumprimento das normas e dos princípios éticos e deontológicos da medicina dentária.

2. Para uma melhor transparência na prestação de serviços, facilitar aos doentes o nome do médico dentista que os trata e as suas qualificações, e garantir o exercício do direito de escolha do médico dentista e o direito de reclamação.

3. Proteger o doente da interrupção de tratamentos por parte do médico dentista no decurso do encerramento de uma clínica e/ ou da perda do rasto do médico dentista. Salvaguardar toda a informação clínica que a clinica recolheu durante a sua atividade, assim como assegurar ao médico dentista o cumprimento do seu dever de dar continuidade aos tratamentos iniciados.

4. Para termos uma melhoria na qualidade da prestação dos serviços, muito importante seria o retomar da utilização de uma tabela de valores de referência, que foi retirada por imposição da Autoridade da Concorrência em 2005. Legalmente, a OMD não o pode fazer, mas existe claramente uma necessidade de pressionar quem de direito para legislar nesse sentido. A implementação de uma tabela de valores de referência (preços) dos atos de medicina dentária, não pode ser erradamente entendida, como uma ação lobista, mas sim como meio de proteção do doente, pois assegura parâmetros de qualidade, transparência de informação e defesa da saúde pública. Há exemplos de regulação tarifária para profissões liberais, existente em vários países, com provas dadas na proteção dos consumidores.

5. Deve ser incutida ainda mais nos médicos dentistas a ideia que é na primeira consulta onde se inicia a criação de laços de confiança entre o doente e o médico, e que estes laços só podem ser duradoiros se forem suportados na competência, na afetividade e diligência por parte do clínico, quando este se centra nas verdadeiras necessidades do doente. É na realização de um diagnóstico correto que se elabora um bom plano de tratamento e uma correta satisfação das expectativas do doente.

Neste contexto, não se pode aceitar que a classe admita a desvalorização do ato médico, como por exemplo a gratuidade da primeira consulta ou no incentivo de dar garantias dos serviços efetuados.
O médico dentista não se deve iludir com a ideia de que a divulgação deste tipo de ações é criadora de um aumento de income de doentes. Hoje conhecem-se estudos onde se reconhece que consultas gratuitas, ou valores de honorários baixos, não se conjugam com a fidelização de doentes.

6. Criar regulamentação legal que proteja a profissão e o médico dentista de situações muito precárias, como o subemprego e ordenados baixíssimos.

O subemprego na nossa área é uma das questões centrais e preocupantes, especialmente para os mais jovens, que se desdobram a trabalhar em quatro ou cinco locais em simultâneo. Encontramos muitas vezes também uma exploração deplorável por parte de alguns grupos de investimento ou detentores de clínicas, alguns destes médicos dentistas, que de uma forma selvagem querem atingir o lucro.
Estes grupos tendem para a desvalorização do ato médico-dentário, para divulgações publicitárias que ferem a deontologia dos médicos dentistas e onde o doente é tratado como um “cliente”, a quem deve ser “vendido” um serviço, que muitas vezes até nem quer, ou nem precisa. Onde não há vontade de fornecer um serviço de qualidade, mas sim um serviço por quantidade e onde não se valoriza o elemento-chave do processo: o médico dentista.

Através de ações pedagógicas e normativas, temos o dever de atuar contra estas situações de possível exploração mercantil, ofensas à dignidade dos profissionais e da profissão, dotando de ferramentas legais para se poderem constituir como infração deontológica todas as relações contratuais entre médicos dentistas, em que não sejam respeitadas a dignidade dos médicos dentistas ou da medicina dentária.

O CDD tem entendido toda esta problemática e nos contactos que tem tido com os colegas e com os alunos finalistas de todas as faculdades, tem chamado a atenção para a importância em centrar a prioridade dos médicos dentistas no diálogo com os doentes, de promover a transparência na comunicação das opções de tratamento e que o estabelecimento de honorários deve ser explicado ao doente, atendendo à complexidade que os atos médico-dentários encerram, ao tempo despendido em cada procedimento, às caraterísticas e qualificações do médico dentista, bem como dos equipamentos e instalações.

Devem os médicos dentistas pugnar pela valorização dos atos próprios de medicina dentária, incluindo a emissão de atestados e receitas médicas, bem como de segundas opiniões de diagnóstico e planos de tratamentos.

7. Apesar de ser um dever estatutário, o médico dentista deve sentir-se sempre incentivado a manter-se atualizado, interventivo, dinâmico e inovador no bom sentido, atuando sempre segundo as melhores práticas clínico-científicas.

8. Por último, o conjunto de todas as ações descritas levam ao combate à emigração como solução final aos problemas que o excesso de médicos dentistas provoca, uma vez que e a emigração leva à perda de recursos económicos e humanos.

Os médicos dentistas que emigram assumem que saem de Portugal para melhorar as suas condições remuneratórias e a qualidade de trabalho.

Quem emigra, por norma, fá-lo nos primeiros meses subsequentes à conclusão da formação de base, sabendo-se que a maioria destes médicos dentistas, não espera regressar, pois consideram ser muito difícil obter as mesmas condições de trabalho em Portugal.

Por tudo isto, creio que é consensual considerar como insustentável o aumento do número de profissionais que saem todos os anos das sete faculdades que lecionam o mestrado integrado de medicina dentária, pois este aumento de médicos dentistas está muito acima das necessidades do país e da renovação de gerações de profissionais. Temos que tomar em atenção que a média de idade dos médicos dentistas no ativo é de 38 anos, portanto muito longe da idade da reforma.

Se nada for feito em breve, ficam as seguintes questões no ar para serem respondidas: até onde o país terá capacidade de absorver o crescente número de médicos dentistas? O que vão fazer os jovens médicos dentistas se não existirem condições de executarem o seu trabalho condignamente? Será que as faculdades vão continuar a atrair tantos alunos novos por ano? Não pode estar certamente na emigração e no subemprego as respostas a estas questões. Não é isso com certeza que queremos.

Luís Filipe Correia
Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina

Artigo publicado originalmente na Revista OMD nº 38 (2018 julho)