O médico dentista Luís Filipe Correia preside, desde 2013, ao Conselho Deontológico e de Disciplina (CDD) da Ordem dos Médicos Dentistas, órgão independente que aprecia e delibera sobre questões disciplinares, éticas e deontológicas da profissão.

Em 2016 foi nomeado pela OMD para integrar a Task Force Ethics do Council of European Dentists, que se encontra a preparar a revisão do Código de Ética do CED, com novas disposições que deverão ser aplicadas a partir do início de 2018.

Em entrevista à Revista da OMD, Luís Filipe Correia destaca os principais desafios com que o órgão disciplinar se depara e as novas exigências que surgem em virtude do contínuo crescimento do número de profissionais. Aborda, ainda, o impacto que a internet tem tido no acesso do paciente à informação e o grau de conhecimento dos médicos dentistas sobre a deontologia que regula a sua profissão.

O presidente do CDD recorda, também, os progressos alcançados em matéria de publicidade em saúde, após um caminho iniciado há quatro anos.

ROMD – Que apreciação faz sobre a generalidade dos médicos dentistas acerca do grau de conhecimento que detêm das normas ético-deontológicas da profissão?

LFC – Diria que o grau de conhecimento geral dos médicos dentistas sobre a deontologia que regula a nossa classe é inferior ao que seria desejável, pois cada um tende a suportar-se na sua moral e deontologia individual. Daquilo que considera ser moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau, não dando a atenção devida às normas que regulam a profissão. A razão deste tipo de comportamento encontra-se, talvez, fundamentada numa atividade isolada, como é na generalidade a medicina dentária, onde os valores morais individuais tendem a sobrepor-se aos coletivos.

No entanto, na medicina o conceito da defesa do “primado do doente” deve ser sobreposto a qualquer tipo de interesse.

Um médico deveria ter o culto do “virtuosismo”, cumprindo os valores morais ideais intrínsecos à sua atividade, como a fidelidade ao doente, a compaixão, a justiça e a equidade, a coragem, o altruísmo e a competência. Entretanto, hoje a saúde é considerada como uma área económica, o que provoca pressão nestes conceitos éticos básicos, sendo necessário regular os comportamentos dos médicos através de códigos de conduta dinâmicos e atualizados aos tempos modernos.

Pode então afirmar-se que, na generalidade, os médicos dentistas conhecem as ideias gerais da ética e deontologia, mas não lhes dão a atenção merecida, a não ser quando surgem as situações de conflito. Considero, portanto, importante e preventivo que todos os médicos dentistas despendam mais do seu tempo a ler o nosso Código Deontológico, as deliberações e recomendações emanadas pelo CDD, a interpretá-las e interiorizá-las, de forma a cumprir naturalmente com as normas estipuladas, prevenindo assim as situações de litígio.

ROMD – A saúde em Portugal está entregue a diferentes reguladoras e autoridades competentes. Como vê o atual cenário nacional de articulação de competências?

LFC – Na minha opinião, a regulação tem que existir. O que se pode discutir é a existência de várias entidades reguladoras na mesma área de intervenção e a interação entre essas entidades.

Da existência de várias entidades resulta a produção de várias leis ou regulamentos, que muitas vezes não concorrem para o mesmo sentido de atuação.

Eu claramente defendo a existência de uma entidade que regule a saúde no seu geral, que bem poderia ser a ERS, e uma outra entidade que regule a classe profissional, isto é a Ordem, com regulamentos e ações bem definidas para ambas e complementares, em que o objetivo principal das duas é a qualidade dos serviços em saúde.

ROMD – Sabemos que uma Ordem não tem funções sindicais. Quais as principais dificuldades que se apresentam a qualquer órgão disciplinar de uma ordem profissional?

Quando está instalado um conflito entre duas entidades, quer seja entre prestadores de serviços ou prestadores e utentes, as partes em conflito procuram sempre que lhes seja feita justiça e num período o mais curto possível.

Por outro lado, o universo dos médicos dentistas tem aumentado anualmente, ultrapassando já os 10 mil, o que se repercute num número crescente de participações feitas ao Conselho Deontológico.

Portanto, o litígio é cada vez maior e o tempo que, inevitavelmente, uma ação disciplinar demora é uma outra causa de descontentamento e de dificuldade de gestão.

Ser membro do CDD e analisar todo o tipo de participação que chega ao seu conhecimento, onde se julga o comportamento lícito, ou não, de colegas, obriga a que se faça um devido distanciamento da nossa condição de médico dentista, ter um perfeito conhecimento de todas as normas deontológicas, possuir uma grande dose de bom senso e, por fim, ter a coragem de assumir a responsabilidade pelas decisões tomadas.

ROMD – O Conselho Deontológico e de Disciplina da OMD é o único órgão independente da OMD. É um desafio exercer funções exclusivas de tão grande relevância para uma profissão?

LFC – Quando qualquer um de nós se disponibiliza para ocupar um cargo nos órgãos sociais de uma Ordem, deve fazê-lo com sentido de missão, de contribuir para uma causa comum e honrar a sua função. Reconheço que o CDD, sendo o órgão que exerce o poder disciplinar, é de capital importância na regulação da atividade, sendo por isso um desafio permanente e exigente.

Mas ser membro do Conselho Deontológico e Disciplina dá acesso a outros tipos de desafios. Pela razão de estarem duas partes em conflito, leva-nos a testemunhar na primeira pessoa tudo o que envolve, pressiona e condiciona a atividade de um médico dentista, desde as condições de trabalho, às relações interpessoais, até ao conhecimento dos temperamentos e valores que cada médico dentista possui.

Digamos que é uma função que obriga a ter que reunir e aplicar muito do “virtuosismo” médico, nomeadamente a compaixão, a justiça, a equidade e a coragem, tornando-se, assim, numa grande experiência de vida.

Por isso, é preciso mantê-lo independente e sem pressão dos outros poderes, executivo e legislativo, para bem da própria instituição.

 

ROMD – O acesso à informação por parte do doente tem aumentado. Considera que este fator tem influência na atividade disciplinar, no sentido do crescimento do número de participações?

LFC – Sabe-se que a iliteracia médica leva facilmente à aceitação de “curas milagrosas”, de “tratamentos pioneiros”, ou da simples aceitação como certo o que os médicos afirmam, sem qualquer tipo de contestação. Para evitar este tipo de passividade por parte do doente, sou claramente favorável ao esclarecimento e educação dos nossos doentes. Se é certo que haverá sempre uma assimetria de conhecimentos entre o médico e o doente, também é certo que é fundamental dotar este último de conhecimentos mínimos, de forma a poder participar no processo de tratamento ou mesmo de não aceitar certas propostas ou práticas de tratamento.

A procura da informação médica na internet tem crescido, mas sabe-se da dificuldade de encontrar nela a informação credível e compreensível para o caso em concreto, cabendo então ao médico dentista fornecer toda a informação ao doente, de uma forma clara e adaptada ao seu nível de conhecimento, para que este possa então decidir com total liberdade o que pretende para a sua saúde e que papel pode desempenhar na sua cura.

O que a realidade mostra é que muitas reclamações são desprovidas de fundamento, enquanto outras não contêm a informação certa, completa e necessária. Umas são simplesmente desabafos. Outras que indiciam uma má prática clínica precisam quase sistematicamente de ser complementadas com informação clínica que fundamente a participação.

ROMD – Podemos conhecer quais as matérias recorrentes que na conduta dos médicos dentistas merecem censura ou reparo do CDD?

LFC – Depende das partes que se encontram em conflito. Caso se trate de um conflito entre dois médicos dentistas, a matéria versa fundamentalmente duas questões: a questão da divulgação profissional, onde as consultas gratuitas, as falsas especialidades ou falsos rastreios são os principais temas, ou o não cumprimento por parte do diretor clinico da deliberação que estipula a necessidade de informar os doentes da nova morada profissional do médico dentista que o atendeu, quando este sai de uma clínica.

Quando se trata de uma participação feita por parte de um doente, as mais usuais incidem sobre a recusa do médico dentista em entregar os meios auxiliares de diagnóstico ao doente quando solicitado por este e na existência de uma possível má prática clínica. As áreas da ortodontia, cirurgia e prostodontia, por se prestarem a tratamentos mais onerosos e mais prolongados, são as mais visadas.

ROMD – A matéria da divulgação da atividade profissional, vulgo publicidade, tem sido um desafio?

LFC – Antes de mais, em relação à publicidade, quero relembrar que no ano de 2005 a Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou uma coima à OMD pela existência de uma tabela de valores com os mínimos e máximos, obrigando-a a revogá-la. Nessa altura, a AdC também avisou que qualquer tipo de obstaculização à publicidade em saúde por parte da OMD seria contrário às regras de mercado instituídas, ameaçando-a com novas coimas.

Em 2007, o CDD elaborou e aprovou um Regulamento Interno, o 115/2007, que regula a divulgação profissional, os seus princípios gerais pelos quais se deve reger, assim como quais os conteúdos admitidos e os proibidos.

Em 2014, dá-se a aprovação do Regulamento da ERS sobre publicidade em saúde e em 2015 é aprovado o Decreto-Lei n.º 238 de 14-10-2015 que estabelece o regime jurídico das práticas de publicidade em saúde, assim como a Lei 124/2015 que aprova os novos Estatutos da OMD.

Foi, portanto, entre os anos de 2005 a 2013 que a publicidade proliferou, tornando-a uma prática comum, alimentada pelo quase vazio legal vigente e pelo desconhecimento geral de quais as regras da publicidade por parte dos médicos dentistas e dos detentores das clínicas dentárias.

A partir de 2013, o Conselho Deontológico alterou profundamente a sua ação perante a divulgação de práticas publicitárias desconformes à deontologia profissional, especialmente quando esta vai no sentido de desprestigiar e ferir a reputação da profissão.

O CDD considerou, também, que seria atribuída ao diretor clinico a responsabilidade pelo cumprimento das regras relativas à divulgação da atividade profissional, uma vez que lhe cabe pugnar pela defesa e cumprimento dos princípios éticos e deontológicos da medicina dentária.

Com esta alteração de conduta por parte do CDD iniciou-se uma nova etapa, com a instauração de procedimentos cautelares ou processos disciplinares.

Portanto, temos um caminho iniciado há quatro anos no que diz respeito à matéria de publicidade e que, até à presente data, resultou na retirada da publicidade efetuada por parte de alguns médicos dentistas, levando ao arquivamento do processo e, entre os processos concluídos com aplicação de penas disciplinares, foram aplicadas 23 advertências, quatro censuras e quatro multas.

ROMD – Não tendo a Ordem poder legislativo, se um dia pudesse legislar que assuntos colocaria na agenda do dia do Parlamento?

LFC – Essa pergunta dá azo àquele tipo de resposta demagógica. Eu se fosse Governo seria muito melhor que o teu e o que eu não conseguisse fazer seria culpa do meu antecessor.

Antes de mais quero adiantar que sou favorável a uma supervisão por parte do Estado em áreas sensíveis e de interesse geral, como é o caso da saúde, pois não acredito na denominada autorregulação dos mercados e, se me é permitido “legislar”, vou aproveitar esta verdadeira utopia, quanto à medicina dentária diz respeito: regular a publicidade em saúde no total respeito pelos interesses do doente e da dignidade profissional, regular a atividade dos planos de saúde e dos seguros no sentido da defesa da qualidade dos serviços, criar regras de acesso e controlo de qualidade dos cursos de medicina dentária, criar a carreira profissional dos médicos dentistas no SNS, possibilitar o acesso universal da população aos cuidados de saúde oral, criando ao mesmo tempo um sistema convencionado com as instituições privadas de acesso à população em geral.

Legislar no sentido da maioria do capital social das empresas da área da saúde serem detidas por médicos, reintroduzir a tabela de nomenclatura com valores mínimos e máximos, incluir o Código Deontológico da OMD como parte integrante dos Estatutos da OMD, dotar as ordens da saúde de um poder regulador e deontológico ainda mais forte, a par de uma Entidade Reguladora para a Saúde, fiscalizadora na defesa do superior interesse dos doentes, legislar no sentido da salvaguarda da informação clínica dos doentes, criar incentivos para a investigação científica e criar programas nacionais de promoção para a saúde com o intuito de aumentar os níveis de literacia da população.

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Entrevista originalmente publicada na Revista da OMD nº 33, de abril de 2017.