Com uma carreira dedicada ao combate à corrupção, a procuradora Leonor Furtado foi nomeada inspetora-geral das Atividades em Saúde (IGAS) em março de 2015. Foi presidente do Instituto de Reinserção Social e auditora jurídica no Ministério do Ambiente.

Esteve na Comissão Anticorrupção de Timor-Leste e foi procuradora-geral-adjunta do Tribunal de Contas da Madeira. Passou ainda pelo Conselho da Europa e pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal.

Promover a qualidade e prevenir a fraude são as prioridades estabelecidas pela inspetora-geral para a sua missão na IGAS. Em entrevista à Revista da OMD, Leonor Furtado destaca as vantagens da cooperação institucional com a Ordem dos Médicos Dentistas no controlo da fraude ou do exercício ilegal da medicina dentária.

ROMD – O que é Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), qual o seu campo de atuação e como funciona?

LF – A IGAS é o serviço responsável pelo exercício concreto das atribuições de controlo e inspeção de estabelecimentos e serviços que prestam cuidados de saúde e que têm a obrigação de fornecer esses cuidados em condições ótimas de igualdade no acesso e de garantia de qualidade e segurança, efetivas.

A sua missão está definida na lei e consiste em auditar, inspecionar, fiscalizar e desenvolver a ação disciplinar, no setor da saúde. A visão que defini para o período da minha comissão – promover a qualidade, prevenir a fraude –, assenta na ideia de que a fraude e a corrupção não são preocupações imediatas dos profissionais do setor da saúde, razão pela qual qualquer intervenção nesse âmbito é considerada burocracia e, por isso, incompreensível. Porém, aquilo a que se chama burocracia, muitas vezes são regras procedimentais que desempenham um importante papel na prevenção do desperdício, da fraude e da corrupção, pelo que, por vezes, simplificar demais, em certos setores da economia, traz perdas irrecuperáveis a médio/longo prazo.

Ora, tendo em consideração a missão definida pela lei e o âmbito da intervenção inspetiva da IGAS, as ações inspetivas são ordenadas em função de indícios de grave desconformidade ou de indícios de risco de desperdício, fraude ou corrupção, sendo as suas conclusões e/ou recomendações sempre comunicadas às pessoas e entidades alvo e, em alguns casos, divulgadas; por outro lado, é efetuado o acompanhamento da implementação das recomendações, podendo determinar novas intervenções, programadas ou sem aviso prévio, sobre essas atividades, esses serviços ou estabelecimentos em causa.

Gostaria de salientar que, fruto de um estudo e trabalho interno, em cooperação com outra entidade inspetiva, a IGAS tem neste momento um mapeamento de riscos do setor, numa perspetiva e abordagem temática da sua intervenção.

ROMD – Qual o âmbito do protocolo recentemente assinado com a Ordem dos Médicos Dentistas e como se materializa? Quais as vantagens deste tipo de parceria?

LF – A colaboração institucional entre a IGAS e qualquer Ordem profissional representa sempre uma mais-valia, para o cabal exercício das competências respetivas, sendo fundamental na prossecução do objetivo comum de garantir a legalidade e o incremento da qualidade dos cuidados de saúde, no caso da saúde oral, prestados aos cidadãos.

Materializa-se através da realização de ações em conjunto ou com a participação de peritos indicados pelas ordens que, com o seu saber específico, permitem uma melhor e mais completa abordagem das temáticas sob fiscalização. Trata-se de uma forma muito particular de exercer a ação inspetiva, sendo certo que, no caso dos médicos dentistas, os peritos médicos indicados pela Ordem são fundamentais no controlo da fraude ou do exercício ilegal da medicina dentária, haja vista que os inspetores da IGAS não verificam nem mexem na boca dos utentes.

Tal como se reafirma no texto do protocolo, as vantagens desta colaboração decorrem da partilha de informação, de dados e de conhecimentos técnico-científicos, bem como, de fomentar e agilizar a articulação entre a IGAS e a OMD e a análise concertada de temas ou aspetos transversais significativos da intervenção inspetiva.

ROMD – A IGAS tem protocolos com outras ordens profissionais? De que forma a cooperação e sinergia criada com as ordens profissionais e entidades reguladoras contribui para uma maior eficácia das ações inspetivas?

LF – Desde 2015, a IGAS celebrou 12 protocolos de colaboração com diversas entidades, sendo que oito são do setor da saúde, uma entidade inspetiva e três com outras entidades externas, uma do setor da justiça e as outras duas do setor universitário.

As organizações são construídas com base na confiança e esta é construída com base na comunicação e cooperação mútuas. O nosso trabalho melhora quando cooperamos com os outros, dando a conhecer o nosso trabalho. O trabalho em cooperação permite-nos verificar o modo como funcionamos, como pomos em prática os princípios da transparência e os objetivos que traçamos. De igual modo, permite-nos solucionar maus hábitos funcionais e dar a conhecer a substância do que realizamos. O objetivo é o de contribuir para uma tomada de decisão assente em critérios técnicos e jurídicos, fiáveis e credíveis, assente na certeza de que, quanto maior for o índice técnico dos resultados da intervenção inspetiva apresentados, maior será a taxa de sucesso da implementação das recomendações e, consequentemente, maior será a qualidade e credibilidade da atuação da IGAS.

ROMD – Qual o campo de ação e as áreas de intervenção prioritárias para a IGAS, no âmbito da medicina dentária?

LF – No âmbito da medicina dentária e de acordo com o que está definido na sua missão, atribuições e plano estratégico, a intervenção da IGAS tem em vista assegurar o cumprimento da lei e elevados níveis técnicos de atuação, no que concerne a prestação dos cuidados de saúde, consubstanciando-se a sua atuação na verificação do respeito pelas disposições legais, regulamentares e orientações aplicáveis à área, por parte dos profissionais de medicina dentária, bem como a qualidade dos serviços prestados.

Nestes termos, além das intervenções de inspeção e fiscalização visando o cumprimento da legalidade, por referência a um quadro contraordenacional próprio, a IGAS visa com as suas ações prevenir e detetar situações de desperdício, de fraude e de corrupção, dando o subsequente tratamento jurídico-legal, designadamente, encaminhando as situações suscetíveis de integrar infrações de natureza criminal para as entidades competentes – Ministério Público e órgãos de polícia criminal – garantindo a salvaguarda dos cuidados de saúde prestados aos utentes e a defesa do erário público.

ROMD – Que balanço faz da atividade no ano passado e quais os dados iniciais para 2017 nesta área da saúde?

LF – O ano de 2016 apresenta um balanço positivo, revelando que o caráter inovador introduzido quer nos temas – por exemplo, verificando situações de higiene, mais dirigidas ao exercício concreto da profissão e ao combate da fraude –, quer na forma como são realizadas as ações de fiscalização – agora se exigindo que sempre que as não conformidades verificadas sejam suscetíveis de integrar um ilícito de mera ordenação social, se efetuar o competente auto de notícia com vista à aplicação das contraordenações correspondentes.

Por outro lado, no âmbito da atividade programada – Plano de Atividades para o ano de 2017 – intensificou-se a presença da IGAS junto de um maior número de entidades, procurando desse modo uma maior cobertura territorial, designadamente, por NUTS e, ao mesmo tempo, alcançar um mapeamento das entidades cuja atividade está relacionada com o exercício da medicina dentária.

No ano de 2016, realizaram-se oito ações inspetivas, cinco das quais com a dupla vertente da fiscalização do funcionamento das clínicas e consultórios de medicina dentária e da verificação da execução dos tratamentos efetuados e faturados no âmbito do Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral (PNPSO), mais conhecido pelo nome de “cheque-dentista”.

Estas ações tiveram como alvo os cinco aderentes com maior volume de faturação na região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo, numa perspetiva de prevenção e de combate à fraude. Na sequência de uma denúncia, uma das ações realizadas visou o combate ao exercício ilegal da medicina dentária, sendo que no decurso deste ano de 2107 estão planeadas ações sobre o mesmo tema, e uma já foi realizada.

No que concerne à fiscalização do funcionamento das clínicas e consultórios de medicina dentária estão planeadas vinte e quatro ações inspetivas, doze das quais já efetuadas, visando a verificação do cumprimento da legalidade dos procedimentos sobre organização e funcionamento dos laboratórios e clínicas dentárias, bem como sobre as condições de higiene.

De igual modo, estão em curso quatro ações no âmbito do controlo da execução do PNPSO, na sequência dos indícios de eventual fraude na prestação dos cuidados de saúde e utilização do cheque-dentista, conforme o resultado das ações efetuadas no ano de 2016.

Até ao final do ano de 2017 poderão ser desenvolvidas outras ações de natureza reativa, sempre que tal se revele necessário e oportuno, em função dos resultados e conclusões das ações em curso, designadamente no que se refere às condições de higiene na prestação dos cuidados de saúde ou do nível dos indícios de fraude que forem detetados ou em função de eventuais denúncias.

ROMD – O número de infrações na medicina dentária é maior ou menor face a outras áreas médicas?

LF – O número de operadores na área da medicina dentária, bem como das denúncias recebidas, é elevado, comparativamente com algumas áreas das especialidades médicas exercidas no setor privado. Não obstante, não possuímos dados fiáveis que nos permitam afirmar se as denúncias recebidas são em maior número do que outro tipo de denúncias relacionadas com outras atividades da prestação de cuidados de saúde. Provavelmente seria um estudo interessante a realizar com a participação da ERS e da Ordem dos Médicos Dentistas, entidades com as quais a IGAS tem protocolos estabelecidos, designadamente para a realização de ações conjuntas e de estudos relacionados.

ROMD – No caso da medicina dentária, como funciona uma inspeção-tipo? Estas ações abrangem todo o sistema de saúde: público, privado e social?

LF – No caso da medicina dentária são realizadas ações inspetivas do tipo fiscalização, que obedecem a uma metodologia tipificada assente em fichas de verificação concebidas em função de um quadro contraordenacional próprio, resultante do regime jurídico de abertura e funcionamento das unidades privadas de serviços de saúde existente para esta área. Estas ações contam com a colaboração ativa de peritos médicos dentistas e de peritos da saúde pública.

Embora a Lei Orgânica da IGAS permita atuar em todo o sistema de saúde, a verdade é que a intervenção da IGAS tem de se pautar pela legalidade e por referência ao quadro contraordenacional vigente, pelo que, tendo em consideração que a legislação habilitante está mais orientada para as unidades privadas de saúde, verifica-se uma maior intervenção fiscalizadora junto das entidades privadas que atuam neste âmbito.

ROMD – Em que penas incorrem os visados pela inspeção, caso sejam detetadas infrações, e que meios podem acionar se não concordarem com a decisão da ação inspetiva?

LF – Antes de mais permita-me esclarecer que, no âmbito da atividade inspetiva, não são aplicadas penas, mas sanções de natureza disciplinar ou contraordenacional.

As ações de fiscalização obedecem a um quadro sancionatório próprio, previsto no regime jurídico de abertura e funcionamento das unidades privadas de serviços de saúde e em legislação conexa.

Porém, relativamente a uma mesma situação fáctica podem ser aplicadas, além das coimas previstas para as contraordenações, sanções de natureza disciplinar ou criminal, pelas entidades competentes na matéria, designadamente as ordens profissionais, o Ministério Público ou os tribunais.

Relativamente aos meios de reação por parte das entidades fiscalizadas pela IGAS, além de lhes serem assegurados os meios de defesa legalmente estabelecidos nos regimes sancionatórios e a desenvolver em sede processual própria, como seja o exercício do direito do contraditório, as mesmas detêm sempre o poder de impugnar as decisões administrativas, reclamando ou recorrendo para as entidades competentes, designadamente para os tribunais.

No âmbito da ação inspetiva e relativamente a infrações que consubstanciem grave risco para a saúde pública, por exemplo, incumprimento das boas práticas de esterilização e radiações ionizantes e, tendo em conta que as equipas inspetivas da IGAS integram peritos médicos de saúde pública, as entidades fiscalizadas podem ver a sua atividade suspensa, com efeitos imediatos, no âmbito das competências próprias das autoridades de saúde.

Tal acontece com relativa frequência, sendo certo que, só depois de as entidades fiscalizadas demonstrarem que procederam à correção das deficiências e à eliminação dos riscos para a saúde pública se efetua o levantamento da suspensão.

 

Entrevista originalmente publicada na Revista da OMD nº 34, de julho de 2017.