Integrar os médicos dentistas nos centros de saúde foi uma das medidas anunciadas há um ano por Fernando Araújo, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, no âmbito das reformas do Serviço Nacional de Saúde na área dos cuidados de saúde primários.

Em setembro passado, o projeto-piloto arrancou em 13 unidades de saúde, com prioridade para os utentes mais vulneráveis, com carências económicas e com patologias crónicas associadas. Para o governante, o alargamento desta experiência a outras zonas do país e a outro tipo de utentes será o próximo passo deste processo, no acesso generalizado da população a cuidados de saúde oral.

Uma expansão que ocorrerá ao longo de 2017. Fernando Araújo revela, ainda, que outro desafio passa por criar as mesmas condições de trabalho para os profissionais que já exerciam no SNS e prevê iniciar a discussão da carreira dos médicos dentistas.

ROMD – O Ministério da Saúde iniciou este ano um projeto-piloto de saúde oral em 13 centros de saúde, num primeiro passo para suprimir a ausência de consultas de medicina dentária no Serviço Nacional de Saúde. Como vê até à data este projeto?

FA – A medicina dentária foi uma área esquecida pelo Estado e pelo próprio Serviço Nacional de Saúde durante muitos anos. O primeiro passo com vista à mudança desse paradigma foi a criação do Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral, no âmbito da Direção-Geral da Saúde. Mais recentemente o projeto cheque-dentista marcou um novo avanço na direção do acesso e na diminuição das desigualdades entre os cidadãos. O cheque-dentista teve uma evolução que a todos nos orgulha e cuja reputação já almejou honras internacionais.

Desde 2008 foram investidos neste projeto perto de 100 milhões de euros. Mas, um dos problemas associados ao sucesso de projetos como o cheque-dentista é, precisamente, a tentação de, deslumbradas com os resultados, as lideranças políticas se acomodarem ao trabalho feito e se esquecerem o que ainda falta realizar.

Por isso, e reconhecendo a importância inquestionável do projeto cheque-dentista, ainda há um longo caminho a percorrer na promoção da saúde oral em Portugal. Torna-se necessário alargar os cuidados de saúde oral, dos grupos de risco à população em geral. Portanto, o Governo estabeleceu no seu programa, enquanto medida prioritária, a expansão e melhoraria da capacidade da rede dos cuidados de saúde primários, através da ampliação da cobertura do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na área da saúde oral.

A implementação do projeto-piloto de integração de médicos dentistas nos cuidados de saúde primários apenas foi possível graças a uma colaboração próxima com os vários atores do sistema, especialmente, a Ordem dos Médicos Dentistas.

Ainda que se possa reconhecer a necessidade da evolução do projeto, a verdade é que o simples arranque do mesmo constitui um marco único para o SNS.

Os médicos dentistas envolvidos no projeto-piloto iniciaram funções em setembro-outubro deste ano, pelo que a primeira avaliação do desempenho do processo ocorrerá no primeiro trimestre de 2017.

Por outro lado, para além da simples análise de indicadores e números, é importante ouvir os profissionais de saúde. Por isso, o Governo tem mantido um contacto próximo com os médicos dentistas integrados no projeto-piloto. A verdade é que a sua avaliação pessoal é bastante positiva, traduzindo uma satisfação sobre a forma e os resultados obtidos, valorizando o seu papel na concretização da diferença para os utentes. Convido os mais céticos a ouvir estes colegas. Tenho a certeza que ficarão positivamente surpreendidos.

ROMD – Prevê-se o seu alargamento a outras zonas do país, nomeadamente à Região Norte, como a ARS Norte anunciou?

FA – O Governo assumiu, no seu programa para a saúde, o compromisso de, expandir e melhorar a capacidade da rede de cuidados de saúde primários, nomeadamente na área da saúde oral. A concretização desse desiderato constitui, por si só, uma mudança ambiciosa no sistema de saúde do nosso país. Como em qualquer processo de implementação da mudança é importante agora investir no “não abrandamento do processo de transformação”. Portanto, não faria sentido limitarmos esta mudança apenas a 11 centros de saúde da ARS Lisboa e Vale do Tejo e a 2 da ARS Alentejo.

Dessa forma, está já previsto o alargamento deste projeto a novos centros de saúde, durante o ano de 2017, de Norte a Sul do país. Um outro desafio passará por reconhecer e fornecer as mesmas condições de trabalho aos restantes médicos dentistas que já exerciam a sua profissão no Serviço Nacional de Saúde, externamente a este projeto-piloto. Existem cerca de 26 outros médicos dentistas nesta situação. Pretendemos dar-lhes o devido reconhecimento, e alinhar as suas práticas de acordo com os processos implementados no projeto-piloto.

Esta normalização permitirá ao Ministério da Saúde monitorizar a qualidade e produtividade dos cuidados de medicina dentária nos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde, ajustando as prioridades nacionais de acordo com as necessidades dos cidadãos. Para além do alargamento a outras zonas, está também previsto um alargamento do tipo de utentes elegíveis para a referenciação para consulta de medicina dentária nos cuidados de saúde primários. Democratizar o acesso aos cuidados de saúde oral, não limitando o acesso apenas a alguns grupos de doentes é a visão que queremos partilhar.

ROMD – Quando se poderão encetar as negociações do Ministério da Saúde com a Ordem dos Médicos Dentistas que permitam a criação da carreira de medicina dentária no SNS?

FA – Num ambiente cada vez mais dinâmico caraterizado por custos de saúde elevados, a procura crescente de serviços de saúde e o aumento dos encargos associados às doenças crónicas, o objetivo de continuar a garantir o acesso de todos os cidadãos a serviços de saúde de qualidade, só pode ser alcançado se existirem profissionais em número adequado e altamente motivados, que tornem os serviços acessíveis aos que deles necessitam.

No entanto, as reformas do Serviço Nacional de Saúde conduzidas ao longo das últimas décadas têm-se concentrado demasiado em aspetos relacionados com o financiamento da atividade assistencial e com modelos organizacionais.

Uma maior atenção aos aspetos ligados aos recursos humanos em saúde permanece como um desafio a superar exigindo uma clara liderança política do processo, com consenso entre parceiros sociais e o estado, um compromisso partilhado rumo à sustentabilidade e uma visão comum a todos os grupos profissionais envolvidos no sistema: a prestação colaborativa de cuidados de saúde, em que os mesmos são organizados em torno das necessidades dos cidadãos e não das profissões de saúde enquanto grupos individuais.

Assim, o XXI Governo Constitucional estabeleceu como prioridade estratégica o aperfeiçoamento da gestão dos recursos humanos e a motivação dos profissionais de saúde. De forma a prosseguir estes objetivos, é essencial a promoção de novos modelos de cooperação e repartição de responsabilidades entre as diferentes profissões de saúde.

Para que tal mudança do paradigma de colaboração transdisciplinar pudesse ser possível, o Governo, através do Ministério da Saúde, constituiu um espaço de discussão regular com todas as ordens profissionais da saúde, na qual se inclui a Ordem dos Médicos Dentistas. Acontecendo de forma regular, estas reuniões têm-se demonstrado essenciais para a construção de uma nova realidade no âmbito da saúde.

Os primeiros resultados destas reuniões conjuntas de trabalho já são públicos. A aprovação do diploma do Ato em Saúde no Conselho de Ministros do passado dia 15 de setembro apenas foi possível graças a um longo trabalho prévio de discussão construtiva com todas as ordens profissionais da saúde, no qual a Ordem dos Médicos Dentistas foi um dos intervenientes mais construtivos e disponíveis. A inclusão do Ato do Médico Dentista neste diploma é, por si só, um grande passo no que diz respeito à consolidação do papel do médico dentista enquanto prestador de cuidados de saúde.

Temos clara consciência que o incremento progressivo do número de médicos dentistas no Serviço Nacional de Saúde irá ter um impacto real na saúde, com ganhos para a saúde das populações a médio e longo prazo.

Paralelamente à construção conjunta do diploma do Ato em Saúde, o Ministério da Saúde tem também vindo a desenvolver uma discussão alargada com as várias ordens profissionais do setor da saúde tendo em vista a construção de uma estratégia para o Desenvolvimento e Sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Entre vários aspetos discutidos, a consagração das carreiras de diferentes profissionais de saúde, tais como nutricionistas, psicólogos ou farmacêuticos, bem como técnicos de diagnóstico e terapêutica e médicos dentistas tem estado em análise.

Esperamos poder no ano de 2017 iniciar a discussão sobre a estruturação das carreiras, que será seguramente um instrumento diferenciador e promotor da qualidade dos profissionais, que são indispensáveis para o SNS.

ROMD – Essa carreira permitirá a inclusão dos médicos dentistas, algumas dezenas, que aí exercem, embora não integrados na experiência-piloto? E quanto aos médicos dentistas a exercer nos Serviços Regionais de Saúde da Madeira e dos Açores?

FA – Para além da contratação dos 13 médicos dentistas envolvidos no projeto-piloto de integração de médicos dentistas nos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde em 2016, serão contratados novos médicos dentistas em 2017 e, finalmente, será homogeneizada a metodologia de trabalho dos 26 médicos dentistas que já exerciam a sua profissão no âmbito do SNS, ainda que de forma assimétrica, não devidamente reconhecida e pontual.

Idealmente, no final do ano 2017, existirão no Serviço Nacional de Saúde de Portugal continental cerca de meia centena de médicos dentistas a exercer a sua profissão nos cuidados de saúde primários, de forma homogénea, em condições semelhantes e com monitorização centralizada. Constituirão um embrião de um projeto que não terá retorno e finalmente a afirmação incontestável do papel dos médicos dentistas no SNS. A prestação de cuidados de saúde oral nos Açores e da Madeira enquadra-se no âmbito da autonomia regional, em termos da definição das políticas e dos programas de saúde.

ROMD – A Direcção-Geral da Saúde revelou recentemente que na última década, e essencialmente devido ao Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral, número de cáries em crianças e jovens caiu 75%. Este programa, conhecido como cheque-dentista, abrange mais alguns grupo populacionais, como grávidas e portadores de HIV, entre outros, mas ainda não contempla, por exemplo, os diabéticos, doença em que a saúde oral tem forte influência em termos de partilha de fatores de risco. Para quando o alargamento do programa a novos grupos da população?

FA – Desde 2008 o projeto cheque-dentista tem tido uma evolução impressionante: começado com as grávidas seguidas no SNS e idosos beneficiários do complemento solidário, estendeu-se às crianças e jovens em 2009, com alargamento de coorte em 2013, para ainda incluir os utentes infetados com o vírus VIH/SIDA em 2010 e a intervenção precoce no cancro oral em 2014, até mais recentemente os adolescentes.

Em suma, desde 2008 foram abrangidos aproximadamente 2.5 milhões de utentes, que utilizaram cerca de 2.7 milhões de cheques dentistas, perfazendo um total de 8,5 milhões de intervenções, das quais 59% foram de carácter preventivo, 22% curativo e 3% referentes a extrações. Não obstante este percurso inquestionavelmente positivo, o Governo assumiu no seu Programa para a Saúde o compromisso de defender o Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente através da capacitação dos cuidados de saúde primários para a prestação de cuidados de medicina dentária.

Nesse âmbito, os doentes diabéticos são já elegíveis para consultas de saúde oral nos centros de saúde do projeto-piloto de integração de médicos dentistas nos cuidados de saúde primários. Neste contexto, e alinhado com um compromisso de investimento na capacidade de resposta do serviço público às necessidades dos portugueses, o alargamento previsto do número de médicos dentistas a exercer a sua profissão no Serviço Nacional de Saúde garantirá também um aumento progressivo do acesso, com equidade, dos doentes diabéticos a cuidados de saúde oral a nível nacional.

ROMD – Em termos pessoais, como está a ser esta experiência no Ministério da Saúde? Para além do sacrifício pessoal, nem sempre entendido por quem está de fora, que outros fatores correspondem às suas expectativas e quais as maiores surpresas?

FA – Quando há um ano atrás assumimos funções, encontramos um Serviço Nacional de Saúde essencialmente desmotivado. Nesse contexto, construímos um programa de governo, responsável, robusto e ambicioso com objetivo último de fortalecer o SNS e promover a adequação, qualidade, acesso e eficiência dos serviços prestados.

No entanto, defender o Serviço Nacional de Saúde não significa, necessariamente, ser conservador em relação a ele. Antes pelo contrário. Se pretendemos robustecer o Serviço Público deveremos torná-lo cada vez mais eficiente e alinhado com as necessidades dos cidadãos. Para que tal ímpeto seja possível, a mudança e inovação são essenciais. Ora, de todas as áreas estudadas pela economia e gestão, o setor da saúde apresenta-se como aquele em que a implementação da mudança é mais desafiante. Tal deve-se a uma elevada complexidade do sistema e grande número de atores nele envolvido.

Os profissionais de saúde e as próprias instituições tendem a ver a inovação e mudança com ceticismo. A implementação do projeto-piloto de integração de médicos dentistas nos cuidados de saúde primários do Serviço Nacional de Saúde não foi exceção. No entanto, o diálogo próximo com os profissionais de saúde e o seu envolvimento enquanto atores da mudança parece ser um fator crítico de sucesso deste tipo de projetos.

Por outro lado, foi com agrado que verificámos a abertura e motivação dos profissionais de saúde para uma articulação próxima com o Ministério da Saúde, mesmo cientes que, face às fortes restrições orçamentais, não seria possível corresponder a todas as solicitações efetuadas.

O diploma do Ato em Saúde, em que pela primeira vez na história foi possível alinhar todas as ordens profissionais da saúde na defesa dos cidadãos, é a prova que, afinal de contas, com base num diálogo resiliente, é possível construir consensos no Serviço Nacional de Saúde. Os portugueses têm muito a ganhar com esse espírito de corpo na defesa do Serviço Nacional de Saúde.

ROMD – Qual o feedback que obteve da sua presença no XXV Congresso da OMD?

FA – O exercício de funções de liderança política não deve fazer-se de forma distante e desligada da realidade do terreno. Portanto, é essencial procurar proativamente espaços de discussão e partilha de perspetivas com os profissionais, ordens profissionais e instituições. O Congresso Anual da Ordem dos Médicos Dentistas é, sem dúvida, um momento marcante para os médicos dentistas e para a sociedade. Foi para mim, portanto, uma enorme honra poder partilhar tal espaço com uma classe profissional com a qual o Ministério da Saúde quer construir uma relação cada vez mais próxima.

Aproveito para agradecer a forma como fui recebido no XXV Congresso da OMD, com elevada consideração, disponibilidade, profissionalismo e lealdade institucional, consistente com a relação que tem pautado este executivo com a Ordem dos Médicos Dentistas. Podemos não estar sempre de acordo, até porque aí reside a riqueza das democracias, mas é na defesa dos melhores interesses dos cidadãos que sempre encontramos pontos de convergência e consenso.

Entrevista originalmente publicada na edição nº32 da Revista OMD.