O contexto global

Para qualquer associação profissional que trabalhe na área médica é muito importante ter uma presença global e certificar-se que os interesses da profissão e, em particular, os interesses do público estão bem representados, promovidos e defendidos a nível internacional.

A razão pela qual as associações e instituições integram federações a nível local, nacional, regional e internacional é a convicção que, unindo forças com associações que partilham os mesmos valores em diversos níveis, aumentam a probabilidade de alcançar os seus objetivos. Isto significa que podem discutir, debater, por vezes até disputar e, geralmente, chegar a algum tipo de compromisso para seguir em frente.

Para os nossos colegas é por vezes difícil entender as razões da existência de certas organizações internacionais e compreender o que elas fazem para além do que uma organização regional, nacional ou mesmo local faz e pode alcançar. A medicina dentária tem sido, desde sempre e mundialmente, uma das profissões mais bem organizadas a nível nacional. A Federação Dentária Internacional (FDI) foi criada há mais de 110 anos, como um fórum para médicos dentistas partilharem globalmente ideias e experiências. A sua existência hoje comprova, implicitamente, que a profissão precisa de uma voz internacional para defender as suas posições e promover os seus pontos de vista. Deixe-me dar três exemplos:

 

1) Ênfase na prevenção

Como todos sabemos, os dentes têm uma função vital no corpo humano: dentes saudáveis são uma parte fundamental da saúde humana. Os cuidados com os dentes e saúde oral são essenciais para uma população saudável. A cárie dentária e a doença periodontal (osso e gengiva) afetam atualmente 90% das pessoas em todo o mundo.

Tendo em consideração que, em muitos países, os recursos disponíveis para cuidados restaurativos são limitados, uma parte essencial do trabalho da FDI é aumentar a consciência da importância da saúde oral e concentrar os seus projetos e atividades em estratégias de prevenção. Esta é, por exemplo, a mensagem central da conhecida Iniciativa Global contra a Cárie (GCI).

A visão da GCI é melhorar a saúde oral através da implementação de um novo paradigma para a gestão da cárie dentária e das suas consequências – um paradigma que se baseia no nosso conhecimento atual sobre o processo da doença e a sua prevenção, de modo a proporcionar melhor saúde oral, e consequentemente melhor saúde geral, e bem-estar a todas as pessoas. Na prática, o objetivo é conseguir uma mudança de paradigma do modelo restaurativo para o modelo preventivo de cuidados orais.

A FDI lançou a GCI em 2009, com algumas prioridades e ações muito concretas:

  • Erradicar a cárie muito precoce em crianças dos 0-3 anos de idade até 2020.
  • Realizar prevenção primária e secundária e atividades de promoção da saúde.
  • Atingir um consenso sobre a terminologia.

Aos esforços da FDI juntaram-se os parceiros fundadores Colgate, GlaxoSmithKline, Proctor e Gamble Saúde Oral, Unilever e Wrigley. O objetivo foi estabelecer uma aliança abrangente de influenciadores e decisores das áreas da investigação, ensino, prática clínica, saúde pública, o governo e a indústria, em parceria num objetivo comum: atingir a meta de 2020 e efetuar uma mudança fundamental nos sistemas de saúde e no comportamento individual.

A primeira tarefa da GCI era projetar e desenvolver um sistema de gestão e classificação da cárie dentária (SGCC) orientado para a prevenção, estabelecendo assim as bases para o modelo preventivo de gestão da cárie dentária. Neste momento, está em desenvolvimento uma Matriz Mundial de Melhoria da Saúde Oral (MMMSO) para integrar a saúde oral na saúde geral, estabelecendo assim um modelo de saúde oral colaborativo e orientado para a prevenção. É precisamente este modelo preventivo de cuidados que a FDI advoga, juntamente com os parceiros profissionais, no contexto da luta mundial contra as doenças não comunicáveis.

 

2) Saúde Oral e Doenças Não Comunicáveis (DNCs)

Está na hora de admitir que ver a saúde oral como algo separado da saúde geral é verdadeiramente obsoleto, e em nenhum outro campo esta inegável relação é mais bem ilustrada que na área das DNCs, ou doenças crónicas como às vezes são conhecidas.

As DNCs, que incluem doenças cardiovasculares, cancro, doença respiratória crónica e diabetes, entre outros, são responsáveis por 60% das mortes em todo o mundo: em 2008, 36 milhões de pessoas morreram de DNCs, cerca de 80% destas em países com rendimento médio e baixo.

Perante estes dados, a FDI assumiu um projeto para desenvolver um instrumento prático de auxílio na luta contra DNCs, o conjunto de ferramentas contra DNCs (Toolkit). Este trabalho foi realizado em nome da Aliança Mundial das Profissões de Saúde (WHPA), que representa mais de 20 milhões de profissionais de saúde em todo o mundo, incluindo médicos dentistas, médicos, fisioterapeutas, farmacêuticos e enfermeiros. O Toolkit foi financiado pela Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas.

O Toolkit concentra-se nos fatores de risco comuns – dieta pobre, inatividade física, tabagismo e abuso de álcool e inclui um “Cartão de Melhoria da Saúde” para o indivíduo avaliar o risco pessoal, em consulta com um profissional de saúde. O Toolkit contém ainda materiais de apoio para o profissional de saúde, bem como para o doente, juntamente com conselhos sobre como reduzir ou eliminar certos comportamentos de risco.

Naturalmente, algumas pessoas têm perguntado por que razão a FDI e a “medicina dentária”’ concordaram em liderar o projeto da WHPA: afinal, as doenças orais não apresentam taxas de mortalidade elevadas. Há duas razões principais:

  • DNCs negligenciadas, tais como a cárie dentária e a doença periodontal, afetam mais de 90% da população mundial e têm um enorme impacto sobre a saúde;
  • Há uma associação crescente, confirmada por evidências científicas, entre a presença das condições orais (principalmente doença periodontal) e doenças sistémicas, incluindo doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, resultados adversos na gravidez, diabetes mellitus, infeções pulmonares e diferentes formas de cancro.

Mais ainda, é minha opinião que a profissão de médico dentista, e a medicina dentária em geral, devem ter uma ambição muito mais ampla. Dentro da esfera médica, os vários campos de educação, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação estão a tornar-se cada vez mais inter-relacionados. De igual forma, as relações entre a medicina dentária e a medicina em geral, e outros campos como a psicologia, nutrição e sociologia, têm vindo a intensificar-se.

Na verdade, os médicos dentistas encontram-se numa posição privilegiada quando se trata de detetar fatores de risco. Eles são uma das poucas profissões médicas que observam doentes que não estão realmente doentes, mas apenas se dirigem à consulta para um check-up. Além disso, muitos comportamentos são imediatamente visíveis durante um check-up dentário, assim os médicos dentistas estão bem posicionados para iniciar a discussão sobre os riscos.

O próximo passo da FDI será testar o Toolkit WHPA no campo, em um ou dois países em desenvolvimento, para avaliar como se integra na estratégia de saúde e os métodos de utilização por profissionais de saúde.

A um nível mais abrangente, a FDI está atualmente a tentar desenvolver a Parceria Global de Saúde Oral (PGSO), que é encarada como uma parceria multilateral para fazer face ao encargo das DNCs com uma responsabilidade especial em relação às doenças orais: cárie dentária, doença periodontal e cancro oral. O objetivo da PGSO é fornecer liderança estratégica para coordenar e criar sinergias políticas, estratégias e programas dentro de um quadro comum de stakeholders. Permitindo assim, a implementação de um modelo de cuidados de saúde oral com base na promoção da saúde, prevenção de doenças e gestão global da prevenção da doença.

 

3) Saúde oral e desenvolvimento

A maior contribuição para o Toolkit contra as DNCs, e para o projeto a que está associado de campanha contra DNCs da WHPA, permitiu à FDI, juntamente com uma série de outras agências e grupos de trabalho no campo da saúde oral, alcançar um objetivo importante: ter a doença oral especificamente referida na Declaração Política da Cimeira das Nações Unidas sobre DNCs, realizada em Nova Iorque, em Setembro de 2011.

Em termos práticos, as declarações da Cimeira contêm princípios para orientar a estratégia de desenvolvimento e projetos. Ter a saúde oral referida no contexto das DNCs e cuidados de saúde primários significa que a medicina dentária é agora oficialmente ligada à política da saúde geral.

Este resultado é certamente o que muitos países em desenvolvimento desejavam. A sua importância foi claramente ilustrada por um evento, no qual participei durante a Cimeira, intitulado “Colocar Dentes nas DNCs”, organizado pela República da Tanzânia. Destacou-se a importância da saúde oral na estratégia da saúde. De fato, uma oradora, Helen Clark, administradora do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PDNU), classificou as doenças orais como “obstáculos ao desenvolvimento”.

É-me gratificante verificar que a FDI está em sintonia com os conceitos de desenvolvimento: está realmente na hora de encarar o facto de que ver a saúde oral como algo separado da saúde geral é verdadeiramente obsoleto.

E obsoleta está, também, uma abordagem à saúde sem um entendimento político e público das desigualdades na saúde e das suas determinantes sociais: é preciso agir simultaneamente sobre os fatores mais abrangentes que influenciam o comportamento das pessoas em relação à saúde; as condições em que nascem, crescem, vivem, trabalham e a idade; e a influência da sociedade.

Juntamente com os membros da coligação, a WHPA está numa posição única para sensibilizar sobre esta abordagem ao nível global, tendo em conta o âmbito da recente Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS no Rio de Janeiro.

 

Conclusão

Na FDI temos vindo a intensificar o nosso diálogo, com o objetivo de encorajar governos a priorizar e promover a saúde oral e a considerá-la como um direito de cidadania. É essencial que continuemos a salientar um ponto fundamental: “Uma boa saúde oral é um fator primário da saúde geral”.

Orlando Monteiro da Silva

Presidente FDI