Falar do Professor António de Vasconcelos Tavares é abordar a história da medicina dentária portuguesa e da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa (FMDUL). Esta ligação intrínseca manteve-se mesmo na hora da despedida.

A 27 de maio a universidade associou as comemorações do seu quadragésimo aniversário à última aula do docente, naquela que foi a sua casa durante décadas, prestando assim “homenagem a um dos maiores vultos académicos no âmbito da estomatologia e da medicina dentária”. O júbilo do professor foi um dos pontos altos do programa de celebração dos 40 anos da instituição, que incluiu a intervenção de personalidades de renome, nomeadamente António Manuel da Cruz Serra, reitor da Universidade de Lisboa; Luís Pires Lopes, diretor da FMDUL; César Mexia de Almeida, professor fundador da FMDUL, e António Sampaio da Nóvoa, antigo reitor da Universidade de Lisboa.

António de Vasconcelos Tavares notabilizou-se pelo percurso profissional e académico, bem como pelo contributo que deu não só para o avanço da medicina dentária, mas também para o prestígio da FMDUL, enquanto diretor da instituição (2002-2009).

Foi com enorme orgulho que o bastonário da OMD marcou presença na jubilação de “um grande académico, professor, profissional e amigo da medicina dentária e dos médicos dentistas”.

No final da aula, em entrevista à Revista OMD, o professor mostrou-se emocionado e generoso com os Amigos.

António de Vasconcelos Tavares admite que “falta sempre fazer muita coisa”, confessa “a grande gratidão pelo muito” que lhe “ensinaram” e deixa conselhos para os atuais e futuros médicos dentistas por terem “escolhido uma das mais belas especialidades médicas que existe”.

ROMD – Termina este ano um percurso notável no ensino em Medicina Dentária, que culminou com a sua aula de jubilação. Que simbolismo teve o momento em que deu início à sua última aula e que memória vai guardar da carreira de docente?

AVT – Foi um ato pleno de simbolismo e com uma grande carga afetiva, que inevitavelmente me emocionou. Em 60 minutos iria abrir a memória, expor recordações e afetos a todos os meus Amigos presentes: reitores, colegas, alunos, funcionários e convidados, cerca de 750, que enchiam, por completo, o auditório Armando Simões dos Santos. Muitos tinham vindo de tão longe, Porto, Coimbra, Funchal, Évora etc…para estar ali, naquele dia, e assistir à minha última aula. Falei dos momentos mais marcantes da minha vida académica, profissional e pessoal, olhando a todos nos olhos e sentindo uma maravilhosa sensação de dialogar com todos, ao mesmo tempo, como se conversássemos.

Estou imensamente grato a todos os que me deram a honra da sua presença e jamais o esquecerei.

A última lição é consequência de uma imposição legal, que determina os 70 anos como idade limite e que marca o afastamento forçado do exercício do magistério regular. O dia da última lição, ou lição de jubilação, é um dia especial. Confesso que é um pouco melancólico e talvez angustiante ao atingir o jubilado ainda em pleno vigor intelectual e por se assemelhar a um ocaso ou a uma extrema-unção profissional, apesar de representar o justo prémio do trabalho efetuado e o direito ao repouso.

A tradição académica portuguesa e a regulamentação interna das nossas universidades reservam o título de Professor Jubilado para os Professores Catedráticos que se aposentem por limite de idade. Após a reforma o Professor deixa de ter qualquer vinculação hierárquica à universidade. Contudo, os Professores Jubilados podem, a título excecional, ser membros dos júris dos concursos e provas académicas e lecionar, não podendo fazê-lo com caráter permanente de serviço docente.

Só por caprichosa ironia de uma antífrase é que a palavra jubilação pode significar, a um tempo, alegria e tristeza, recompensa e castigo, esperança e deceção. Em síntese: jubilação sem júbilo.

Permitam que vos cite, pelo inegável interesse que tem, uma reflexão sobre o termo jubilação feita pelo anterior reitor da Universidade do Porto, o meu querido amigo Professor Doutor José Carlos Marques dos Santos, na aula de jubilação da Senhora Professor Doutora Maria de Sousa, no Salão Nobre da Reitoria da Universidade do Porto.

“Jubilação é o indulto pelo qual a Santa Sé concede aos capitulares prebendados, depois de 40 anos de serviço contínuo e louvável no coro, a faculdade de conservar todos os direitos, sem obrigação de assistir ao coro. A jubilação tem como causa o serviço contínuo e louvável, pelo período de 40 anos, numa ou diversas igrejas da mesma cidade, ou diocese e considera-se louvável o serviço quando o capitular não tiver ausências ilegítimas e houver cumprido com exatidão o seu ofício. Este conceito da esfera canónica foi transferido para a da sociedade civil onde jubilação significa, aposentação honrosa de serviço oficial. Portanto, ao termo Jubilação de um servidor público poderá estar associado um caráter festivo de distinção do jubilado, reconhecimento da atuação pública pelos serviços prestados e poderá, por conseguinte, não ser um ato de despedida. Tanto assim é que o jubilado pode manter todos os direitos profissionais que possuía, exceto o de lecionar regularmente. O dia da jubilação é um dia que marca a transição de uma vida profissional marcada por obrigações para outra, mais livre, pautada por devoções”.

Da minha carreira de docente, que tanto representou para mim, guardarei as melhores recordações dos colegas bem como dos alunos e funcionários. Tenho uma grande gratidão pelo muito que me ensinaram, pois com todos aprendi, assim como pelo modo afável e pela estima com que sempre fui tratado. Estou certo que terei muitas saudades do saudável convívio que sempre mantive com todos os que tive a honra de servir, de ensinar ou de dirigir, tanto na faculdade como na reitoria, onde estive oito anos como pró-reitor e mais quatro como vice-reitor.

Refere em entrevistas que foi «obrigado» a reformar-se. Fazendo o balanço da sua carreira, que se repartiu por inúmeros projetos e funções, do que sentirá mais falta?

Como se pode depreender do que atrás ficou dito, é difícil fazer essa escolha. As atividades eram bem diferentes, embora tivessem alguns pontos comuns. Quando em 2013, findou o meu mandato de vice-reitor, logo após a concretização da fusão da Universidade Técnica com a de Lisboa, podia ter tirado um ano de licença sabática mas preferi voltar à minha Faculdade, para junto dos meus de quem tinha muitas saudades. Em boa verdade, as funções na reitoria não me deixavam muito tempo livre, pelo que se passavam, por vezes, algumas semanas sem que tivesse oportunidade de conversar com os meus colegas e amigos da faculdade. Contudo, reconheço que, também, fui muito feliz e até acarinhado na reitoria onde dispunha de grande liberdade de ação. Prezo muito os reitores com quem trabalhei. O Professor Doutor José Barata Moura e o Professor Doutor António Sampaio da Nóvoa, de quem fui um dos mais diretos colaboradores. Conferia-me grande liberdade de ação, confiando e suportando normalmente todas as minhas decisões.

As palavras que proferiu e a afetividade que demonstrou, após a minha aula de jubilação comoveram-me muito, mesmo muito. Fez, publicamente, uma apreciação muito elogiosa que só a grande amizade, companheirismo e confiança mútua, podem justificar.

Em conclusão, sentirei uma grata recordação de tudo e todos me faltarão.

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Foi académico, cientista, clínico, docente e dirigente universitário. O que é que ainda lhe falta fazer e que planos tem para esta nova etapa?

Clínico espero continuar a ser, enquanto a mente comandar as mão e estas obedecerem sem hesitações nem tremuras.

Na minha vida as etapas foram sucedendo sem que houvesse uma grande premeditação. Muitas vezes fui ouvindo e cumprindo os conselhos dos mais antigos e experientes, quando não segui as suas sugestões muitas vezes me arrependi.

Do meu pai ao Professor Simões dos Santos e ao Professor Sami Sandhaus, entre outros, a todos devo sábios conselhos que muito me ajudaram.

Falta sempre fazer muita coisa, ou melhor, há sempre muita coisa que poderíamos e deveríamos fazer mas o tempo de vida é curto e passa muito rapidamente sendo, normalmente, muito difícil realizar tudo o que desejaríamos ver concretizado.

Como planos, gostaria de poder continuar ligado à investigação que ajudei a criar e a acompanhar projetos de alunos de doutoramento, quer em medicina dentária, quer em enfermagem. Presido ao Conselho Geral da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa e à Comissão Científica do Doutoramento em Enfermagem da Universidade de Lisboa, o que me permitiu acompanhar trabalhos de investigação notáveis. Presidi, até à minha jubilação, a 43 júris de provas de doutoramento neste últimos quatro anos e confesso que sinto orgulho na qualidade científica das provas que têm sido efetuadas.

Após ter concluído o livro “Urgências em Medicina Oral” a ser lançado pela Lidel, provavelmente ainda antes de férias, em que fui coordenador e autor com mais 14 colegas – e que estou certo que os colegas irão apreciar -, penso que gostaria de escrever mais um livro. Este seria diferente e reuniria uma coletânea das diferentes intervenções públicas feitas ao longo dos últimos 20 anos.

A aula de jubilação coincide com os 40 anos da FMDUL, uma instituição em que teve um papel essencial desde a fundação. Quais foram os principais desafios que a FMDUL enfrentou?

Ao longo de quatro décadas, como é natural, foram vários os desafios relevantes que tiveram de ser vencidos. Não gostava de repisar a velha tecla da falta de meios financeiros, mas em certos períodos mais críticos foi esse o problema mais preocupante. Contudo, foi sempre possível, com a colaboração da reitoria e a boa vontade dos colegas da nossa faculdade, encontrar soluções.

Houve, no início de 2001, uma situação muito preocupante por falha de um financiamento estatal que estava previsto e que era fundamental para pagar as faturas da construção do novo edifício, que posteriormente seriam reembolsadas por Bruxelas. Nessa altura o Sr. Reitor Barata Moura promoveu uma reunião, com todas as Unidades Orgânicas da Universidade de Lisboa, em que expus a situação e toda a universidade se mobilizou para nos ajudar emprestando-nos a avultada verba em causa. Em apenas oito dias, para sossego do meu querido amigo Professor Simões dos Santos que era o diretor, resolvemos a situação.

No ano letivo de 2008/2009, último ano do meu mandato como diretor, o último piso das clínicas tinha enormes infiltrações pelo terraço que obrigava a colocar recipientes, em plena clínica, para recolher a água da chuva. O Conselho Diretivo decidiu, com o apoio de toda a faculdade, fechar as clínicas por falta de condições de funcionamento. Felizmente, o Ministro da Ciência e Ensino Superior era o Professor Doutor Mariano Gago, a quem presto justíssima homenagem, que me recebeu de imediato e desbloqueou a verba necessária para proceder às reparações e compra de novos equipamentos, substituindo os anteriores completamente deteriorados.

No passado ano, também, tivemos um período difícil com a obrigação de proceder a uma ampla reestruturação e fecho da consulta externa. Apesar dos esforços do Professor Aquino Marques, já em final de mandato, a situação parecia difícil de solucionar. Contudo, graças à mobilização de todos os colegas do Conselho Científico da faculdade, com a dedicação invulgar do Professor Luís Pires Lopes que, entretanto, foi eleito diretor, e o apoio da reitoria, tudo se conseguiu solucionar. De um problema complicado, nasceu uma solidariedade ainda mais reforçada em torno do diretor e dos órgãos de gestão da faculdade. Com o acordo estabelecido com a reitoria, as reestruturações efetuadas e as obras de adaptação recentemente inauguradas, penso que a crise está em vias de ser apenas, uma recordação desagradável.

São estes os desafios que recordo e que no fim se resolveram sem problemas de maior. Mas, se tudo correu bem, muito se ficou a dever aos colegas da faculdade e da universidade e ao enorme apoio da reitoria, que jamais poderemos esquecer.

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Como olha para a FMDUL da atualidade e como a imagina daqui a uma década?

A faculdade atualmente está num percurso de recuperação que dará os seus frutos dentro de dois ou três anos. Prevejo que, graças às alterações efetuadas, a situação financeira irá consolidar-se progressivamente, o que é fundamental para o seu desenvolvimento.

Nos tempos que correm, devido à incerteza da evolução económica do País e com a rápida evolução do conhecimento, é difícil fazer previsões. Contudo, se me é permitido, diria o que gostava que acontecesse. Gostava que daqui a uma década o Centro de Investigação da Faculdade, o UICOB (Unidade de Investigação em Ciências Orais e Biomédicas), se tivesse desenvolvido com novas parcerias e estivesse consolidado. Que a faculdade conseguisse diminuir o numero clausus de modo a admitir menos alunos no 1º ano e aumentasse o número de pós-graduações e de alunos de mestrado e doutoramento, dedicando-se cada vez mais aos estudos pós-graduados e à investigação.

A sua obra e dedicação inspirou não só os seus alunos, mas todos os médicos dentistas. Em termos globais como avalia o panorama do setor da medicina dentária em Portugal?

A frase é muito simpática e, embora reconheça o pioneirismo da minha investigação e o facto dos materiais e métodos da minha Tese de Doutoramento ainda hoje serem úteis a muitos colegas, há alguma dilatação da realidade. Mas sinto-me muito feliz e recompensado pelo esforço desenvolvido se, de algum modo, as múltiplas atividades que desenvolvi puderem ter inspirado os médicos dentistas portugueses.

O setor da medicina dentária em Portugal está de parabéns, por ser constituído por profissionais altamente qualificados e pelo prestígio que internacionalmente lhe reconhecem.

A meu ver, existe uma situação que é inquietante e reside no número de médicos dentistas que anualmente terminam os seus mestrados integrados e que ficam em situação de subemprego, apesar dos esforços da sua Ordem para solucionar o problema. Contudo, penso que o problema, também, tem ligação com a atual crise de desemprego jovem no país. Acredito que será uma questão de tempo e à medida que o País for recuperando a situação melhorará.

Desempenhou cargos de direção em vários organismos e foi inclusive pró-reitor e vice-reitor da Universidade de Lisboa. Como analisa o relacionamento institucional dessas organizações com a OMD? É possível fazer um balanço desta colaboração?

Quando na questão anterior referi o facto da Ordem dos Médicos Dentistas ser das mais prestigiados que conheço, dizia-o precisamente porque, durante os anos em que estive na reitoria, verifiquei a progressiva afirmação e consolidação do prestígio que a Ordem foi construindo. Relacionamento esse que não se limitou aos reitores do Norte do País mas, também, a Coimbra e a Lisboa. Em relação à Universidade de Lisboa, caso que conheço bem de perto, o relacionamento tem sido excelente e o balanço dessa colaboração é altamente positivo, com muitas provas de consideração e estima mútua.

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Temos uma nova geração altamente qualificada, mas não há mercado de trabalho. Esta é uma situação que afeta igualmente os médicos dentistas. Está confiante quanto ao futuro da sua profissão? Que mensagem gostaria de deixar aos jovens que estão a concluir a formação em medicina dentária?

Sem dúvida que estou confiante em relação ao futuro de uma profissão que é prestigiada e em que a grande maioria dos clínicos tem uma preparação de alto nível.

Por outro lado, a Ordem dos Médicos Dentistas é das mais prestigiadas que conheço e com grande peso institucional e político. É necessário ter paciência porque não é um problema de fácil solução, mas estou convencido que será uma questão de tempo até ser encontrada uma forma que permita evitar o fluxo da emigração de profissionais de grande qualidade e que corre o risco de se adensar. Prestigia no estrangeiro o nome da medicina dentária portuguesa e de Portugal, mas seria, talvez, melhor se no futuro viesse a conseguir uma cobertura mais uniforme do País, incluindo estes excelentes profissionais nas estruturas nacionais de saúde.

Como mensagem para os finalistas deste ano e que, no caso da minha faculdade, tanto me ajudaram a organizar a aula de jubilação, demonstrando um enorme carinho, eu gostava de lhes deixar estas simples mas sentidas palavras:

Felicito-vos por terem escolhido uma das mais belas especialidades médicas que existe. Na nossa profissão, a empatia a estabelecer com o paciente é fundamental para o sucesso da terapêutica a efetuar. Escutem atentamente o que ele tem para vos dizer e não se preocupem se gastarem algum tempo a ouvi-lo, tenham carinho e compreensão. Não se esqueçam que, normalmente, todos têm receio dos nossos tratamentos e é fundamental fazer de cada doente um Amigo, que confia em nós. Estejam seguros e confiantes nas vossas capacidades, a preparação recebida nas Universidades está ao nível das melhores do mundo. Trabalhem com honestidade e estima pelos vossos pacientes. Com o tempo, o sucesso virá.

 

Entrevista originalmente publicada na Revista da OMD nº 26, de julho de 2015.